Por gabriela.mattos

Brasília - A Constituição de 1988 estabeleceu os requisitos para a seleção dos ministros do Tribunal de Contas da União — que são usados também para a escolha dos conselheiros dos tribunais de contas dos estados e municípios. É necessário ser brasileiro, contar mais de 35 e menos de 65 anos de idade, ter idoneidade moral e reputação ilibada e ser portador de notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros ou de administração pública, além de mais de dez anos de atividade profissional no ramo.

Domingos Brazão, um dos cinco conselheiros do Tribunal de Contas do Estado que foram presos na quarta-feira pela Polícia Federal na Operação Quinto do Ouro — junto com um ex-conselheiro —, cumpre parte dos requisitos: é brasileiro e tem 52 anos. Sobre os “notórios conhecimentos”, ele, que é comerciante de profissão, não tem curso superior completo.

Caso do TCE-RJ está longe de ser fato isoladoArte O Dia

Quanto à 'reputação ilibada', pode ser contestada por denúncias de ter feito campanha com apoio da milícia que atua na comunidade de Rio das Pedras. A 'idoneidade moral' é, no mínimo, duvidosa, já que um cidadão de suas relações trabalhava como assessor em seu gabinete de deputado na Assembleia quando foi preso como líder de uma quadrilha de adulteração de combustíveis — detalhe: o conselheiro é dono, ou sócio, de uma dúzia de postos de gasolina. “Isso é gravíssimo!

Como um cidadão que figura em CPIs e não tem experiência nenhuma em auditoria pode ter a responsabilidade de fiscalizar o uso do dinheiro público?”, pergunta o auditor do Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul Amaury Perusso.

Presidente da Federação Nacional das Entidades dos Servidores dos Tribunais de Contas do Brasil, o próprio Perusso responde: “Os tribunais de contas em todos os estados se transformaram em negócios privados, uma verdadeira ação entre amigos”. Um sinal disso é que o caso do Rio não foi tão inédito. Em 2010, a Operação Mãos Limpas também levou para a cadeia um presidente do TCE, o do Amapá, além de proibir a entrada no Tribunal de quatro outros conselheiros.

Não seriam necessárias as malas 007 que, segundo a delação do ex-presidente do TCE, Jonas Lopes, chegavam regularmente ao prédio do TCE no Centro do Rio, recheadas de propina, para que o cargo de conselheiro fosse atraente. Afinal, o salário dos ocupantes do cargo é de cerca de R$ 30 mil e, melhor, o posto é vitalício.

No início, a melhor das intenções

Aroldo Cedraz%2C ministro e investigadoWilson Dias/Agência Brasil

Os constituintes tiveram a melhor das intenções ao transferir para os parlamentos a prerrogativa de selecionar os ministros do Tribunal de Contas da União e dos tribunais de contas estaduais. Afinal, a função desses tribunais é acompanhar e julgar a legalidade dos gastos realizados pelos órgãos de administração do Estado. E é competência constitucional do Legislativo a fiscalização dos atos do Poder Executivo. No entanto, os deputados federais e estaduais logo passaram a usar as indicações como parte do jogo político. "Em vez de escolherem pessoas com conhecimento da tarefa de fiscalização, as escolhas caíram sobre apadrinhados", diz Perusso.

Diretora de Controle Externo da ANTC (Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil), Lucieni Pereira cita como exemplo o ministro do Tribunal de Contas da União Aroldo Cedraz. "Ele é veterinário. Com todo o respeito, mas o trabalho de controle é complexo e exige conhecimentos específicos", diz ela. Cedraz, apadrinhado de Antônio Carlos Magalhães, foi deputado por quatro legislaturas antes de ser indicado para o posto pela Câmara dos Deputados.

Presidente do TCU até o ano passado, Cedraz é investigado pelo próprio órgão. O filho dele, Tiago Cedraz, atuou em vários processos na corte. Tiago também foi citado em delação pelo empreiteiro Ricardo Pessoa, da UTC, que disse ter pagado a ele R$ 50 mil mensais em troca de informações privilegiadas vindas do órgão então presidido pelo pai dele.

Ele poderia ser ministro do TCU, mas acabou atrás das grades

No final do ano passado, o ex-senador Gim Argelo foi condenado a 19 anos de prisão pelos crimes de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e obstrução à investigação. Segundo a sentença da Justiça Federal, ele aceitou vantagem indevida — o valor teria sido de R$ 7,35 milhões — da empreiteira UTC. Em troca, ele não convocaria a empreiteira para prestar esclarecimentos na CPI que investigava casos de corrupção na Petrobras, em 2014.

Gim Argelo%2C que quase foi ministro do TCUJosé Cruz / Agência Senado

No mesmo ano em que, na visão da Justiça Federal, ele embolsava as propinas, o senador foi indicado para se tornar membro justamente do órgão encarregado de identificar casos de corrupção na esfera federal: o Tribunal de Contas da União. “Era inimaginável. Nós não poderíamos admitir isso”, lembra Lucieni Pereira, auditora do órgão e diretora da ANTC. Na época, o político hoje atrás das grades já respondia a vários inquéritos, nos quais era acusado de fraudes imobiliárias e emendas destinadas a entidades culturais de fachada, entre outras façanhas. 

A indicação provocou forte resistência dos auditores do TCU. Cerca de 400 manifestantes ocuparam a rampa de acesso ao plenário da corte. Diante da resistência, Argelo, então senador pelo PTB, acabou abrindo mão da indicação.

O dia do protesto, 9 de abril de 2014, ainda é lembrado pela categoria dos auditores como um marco. “Essa deturpação de órgãos criados para o controle externo dos atos dos governantes é que leva a situação como a do Rio. Mas, com a situação às claras, temos uma chance de mudar o quadro”, diz Amauri Perusso, da FENASTC.

José Júlio de Miranda%2C que foi preso quando presidia o TCE do AmapáDivulgação

Pareceres técnicos são desprezados em nome dos interesses políticos dos conselheiros

Existe um embate permanente entre a área técnica dos tribunais de contas e os conselheiros e ministros que descem de paraquedas para ocupar os cargos de comando dos órgãos.

Os auditores e procuradores, selecionados em concursos públicos, são altamente capacitados, além de bem remunerados. No entanto, os pareceres que produzem são submetidos aos conselheiros, eleitos por deputados, geralmente entre seus pares.

Os relatórios produzidos pelos auditores, muitas vezes, nunca são conhecidos pelos contribuintes. Apenas a decisão final é publicada. O auditor Amauri Perusso,da FENASTC, vê a cultura de falta de transparência dos tribunais como um fator de favorecimento aos desvios. “Defendemos que, terminado o relatório das investigações dos auditores, publique-se para que possa ser apreciado por toda a sociedade. Isso já dificultaria qualquer má intenção por parte de conselheiros ou ministros. O ato de auditoria, de modo geral, é técnico. O problema é que a votação dos relatórios é contaminada pela política”.

Dos nove ministros do TCU, seis são escolhidos pelo Congresso e um pelo presidente — sempre, políticos —e apenas dois são egressos dos quadros do TCU. “Aqui em Brasília, no entanto, os auditores ocupam cargos administrativos importantes. Quando a base é forte, o ministro não ousa assumir certas atitudes”, diz Lucieni Peerira, da ANTC. “O problema é que, nos estados, existem desvios de função que são estrategicamente planejados”.

Um caso trágico de prevalência da política sobre a técnica foi a aprovação das contas do ex-governador e atual vizinho dos conselheiro do TCE em Bangu 8 Sérgio Cabral, em 2014 . Vinte auditores recomendaram a reprovação das contas do governo, em parecer de 600 páginas. O secretário-geral de Controle Externo, Carlos Roberto Leal, funcionário de nível médio, produziu um relatório alternativo de 60 páginas. Os conselheiros aprovaram o parecer de Leal.

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