Por nara.boechat

Rio - Na imensidão da área ocupada pelo Alemão, somente a identificação das ruas principais aparece no Google Maps. O mesmo acontece com a Maré, Cidade de Deus e várias outras comunidades. O documentário ‘Todo Mapa Tem Um Discurso’ estreia na terça-feira, às 20h, no Planetário da Gávea, justamente para provar que a realidade está bem longe disso. Através da colaboração de moradores dessas regiões, a vida pulsante que as milhares de vielas apertadas das favelas abrigam agora ganha voz e as telas.

Cena de ‘Todo Mapa Tem um Discurso’%2C na comunidade da RocinhaFrancine Albernaz

Tudo nasceu com o projeto Wikimapa, da organização social Rede Jovem, em 2009. A ideia era mostrar o que as favelas têm de bom para o resto da cidade. Só havia um ‘pequeno’ problema: ruas sem CEP, casas sem número e várias ruas sem identificação no mapa. “Nos deparamos com uma série de situações que nos impactaram e chamaram muita atenção”, lembra Natalia Santos, coordenadora do projeto e produtora do filme.

“As pessoas não recebem suas correspondências em casa. Comprou algo pela internet? Não chega...”, vai enumerando Patricia Azevedo, também coordenadora do Rede Jovem. Nada disso impede um crescimento cultural latente nessas áreas. É o Forró do Valão, que rola todos os sábados e domingos, na Rocinha; a Feira do Morro Agudo, em Nova Iguaçu, e tantos outros exemplos.

Para destacar cada um deles, nada melhor do que quem vive por lá. Foram essas pessoas que se uniram para mostrar no filme que as vielas são habitadas e têm voz. “Para a mídia, o meu bairro não existe. Ouço todos os dias nos noticiários: ‘Mais um roubo/estupro/etc. em bairro de Nova Iguaçu’, descubro que é meu bairro pelas letras miúdas que vêm abaixo do nome do repórter. Ninguém sabe que aqui tem coisas boas também, temos cachoeiras, festas, costumes e até um vulcão”, relata a moradora do Morro Agudo, Suellen Casticini, de 23 anos, no blog do Wikimapa (http://blog.wikimapa.org.br).

Há cinco anos vivendo no Capão Redondo — única área fora do Rio mostrada no filme —, o produtor cultural Rogerio Gonzaga, de 38 anos, não reconhece o seu entorno como costuma ser retratado no noticiário. O bairro da Zona Sul de São Paulo é considerado um dos mais violentos no país. Não para quem vive de arte, como ele. “Temos muita coisa acontecendo. Existe um movimento forte aqui de saraus e da cena de hip hop, que pulsa bastante. Também há teatro, dança... Mas quem é de fora só conhece o lado negativo mesmo”, diz Gonzaga, responsável pelo Praçarau, sarau realizado em praças públicas do Capão.

Além de exibir o que há de bom nas favelas, durante seu processo de criação o documentário ajudou alguns moradores a deixarem para trás seus preconceitos. “Conheci uma menina do Santa Marta que só dizia que morava em Botafogo. Hoje, ela olha aquele local com outros olhos”, conta Patricia. Natalia também cita situações curiosas no resgate da história desses locais. “Na Cidade de Deus, os mais velhos chamam algumas ruas por um nome e os mais novos, por outro”, destaca.

Dona Tuca, de 81 anos, 42 deles vividos na Cidade de Deus, que o diga. A avó de 14 bisnetos, que se apresenta como atriz, cantora e poetisa, não reclama de nada. Pelo contrário, faz questão de repetir apenas frases positivas. “Temos poesia na praça, balé, futebol e um monte de coisas. Tenho que fazer o possível para viver bem aqui e fazer o lugar onde moro cada vez melhor”, ensina ela.

Depois de um bate-papo animado, ela faz uma pausa, e dispara: “É isso, minha filha, a gente tem que cuidar e aproveitar o que tem. Para me despedir, posso cantar uma música para você?” Então ela cantarola uma canção de amor, pergunta à repórter se gostou e termina: “É de minha autoria, chama-se ‘Doce Ilusão’. Tchau, minha filha, um bom dia para você.”

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