Rio - Ouvindo Aldir Blanc, o grande poeta da MPB que fez aniversário ontem, reencontro esses versos: “Saindo pro trabalho de manhã, o avô vestia o sol do quarador/Tecido em goiabeiras, sabiás, cigarras, viralatas e um amor...” Como a infância é importante, mesmo que ela não tenha sido grande coisa. Sempre nos acompanhando, cortina de sonhos, memórias vividas ou inventadas (não importa), nos ajudando a suportar o presente de tão pouca poesia. Como a obra (na música ou na literatura) do Blanc está repleta e tesouros escondidos na caverna da infância. Por isso é tão linda. Memórias da inocência no bom e velho Estácio de Sá, onde nasceu, se criou e até hoje vive o não menos lendário Alceu, que é seu pai e também o Ceceu Rico de suas crônicas. Entre o Estácio, Vila Isabel, a Tijuca e a Muda correm, sempre margeando o Rio Maracanã, as veias de Aldir Blanc.
“Há quem não se importe, mas a Zona Norte é feito cigana, lendo a minha sorte...”
Depois do Estácio veio a Vila Isabel, que está em tantas canções suas. Um dia, tentando esclarecer algumas datas e fatos daqueles dias para um inventário de infância que escreveu em homenagem ao bairro do Noel Rosa, Aldir ouviu do pai a seguinte resposta:
— Como é que, a essa altura do campeonato, você quer que eu me lembre de uma merda dessas?!
O quintal da casa do menino na Vila servia para reunir amigos e parentes em torno das panelas e dos pratos, do radinho de pilha contando o jogo do Vasco (“Sabará na ponta direita do templo...”), das garrafas, muitas garrafas. A poesia já morava ali, à sombra das goiabeiras, laranjeiras, bananeiras, mangueiras, dos pés de abiu, sapoti, limõesbravos; a boemia só veio em seguida.
Continuo ouvindo uns discos dele, folheando um songbook, e pensando aqui o quanto a obra musical de Aldir, construída com tantos parceiros (João Bosco, Moacyr Luz, Guinga, Cristóvão Bastos...), é cheia de meninice e de maturidade, de vida e de morte. A fase da Vila já foi descrita como uma febre (“Vila Isabel é a febre de viver, que não passará enquanto eu respirar”), influenciando quase tudo o que vem depois, especialmente as crônicas cantadas ou escritas.
Tá quase tudo lá, vem quase tudo de lá, e nada se perdeu ou foi desperdiçado: o “asmático rondando pelo corredor”, as hemoptises, os palavrões, as brigas e confraternizações em família, o amor desgovernado pedindo cama na rua, os feudos, as frases de efeito, as farsas e o futebol, os funcionários de plantão e os desempregados por opção. Enfim, a vida.
Viva a vida que nos é permitida. E parabéns, Blanc, pelo seu aniversário.