Por daniela.lima

Rio - O ano era 2009. O prognóstico, um dos piores possíveis: linfoma não Hodgkins — um tipo de câncer que se desenvolve nos linfonodos, ou gânglios. A jornalista Luciana Medeiros não tinha motivos para comemorar naquele momento. Ela passou a se tratar no Grupo de Clínicas Oncológicas Integradas (COI) e, quatro meses depois, recebeu o diagnóstico de que estava curada. Foi o fim do processo de cura e o início do projeto que resultou no livro ‘25 Cronistas Falam de Superação’, que será lançado hoje, às 19h, no Studio 512, no Jardim Botânico.

Capa do livro%2C com curadoria de Luciana MedeirosDivulgação

A obra, como o título mesmo explica, reúne 25 crônicas de personalidades brasileiras que foram sensibilizadas e abraçaram a ideia — todas aceitaram o convite para escrever não necessariamente sobre câncer, mas sobre diversas outras formas de superação. Entre os selecionados, nomes como Gregorio Duvivier, Pedro Bial, Cora Rónai, Arthur Dapieve, Fabrício Carpinejar, Julia Spadaccini, Leo Aversa, Letícia Wierzchowski, Marcelo Moutinho, Martha Medeiros, Mauro Ventura, Nelson Vasconcelos (editor-executivo do Dia Online), Pedro Paulo Rangel, Ruy Castro e Sergio Rodrigues.

Além dos textos desses autores, foram inseridos depoimentos de alguns dos cerca de 70 pacientes que, como Luciana, já passaram pelo programa Histórias de Superação do Grupo COI.

“Foi uma forma de complementar a homenagem àqueles pacientes que, como eu, encararam a doença na certeza de ultrapassar barreiras e do aprendizado”, resume a curadora da iniciativa.

Um dos textos que melhor exemplificam a variedade de maneiras como o tema superação é abordado pode ser encontrado em ‘Ecos de Paris’, escrito por Pedro Paulo Rangel. Nele, o ator descreve, com humor, como teve que enfrentar o trânsito caótico da capital francesa para conseguir recuperar o passaporte a poucos minutos da saída de seu voo.

O livro, que conta com ilustrações de Flávio Pessoa, não será comercializado. No entanto, será possível trocá-lo no lançamento por um quilo de alimento não perecível, que será encaminhado à Casa de Apoio à Criança com Câncer Santa Teresa. 

Para o hospital, nos braços dos foliões (Ruy Castro - escritor e jornalista)

Ronaldo Bôscoli, letrista da Bossa Nova, coautor de O barquinho e um dos grandes conquistadores da história do Rio, estava num hospital, tratando-se de um tumor na próstata. Seu parceiro Roberto Menescal foi visitá-lo. Ao entrar no quarto e ver Ronaldo na cama, atado a um vidro de sangue e a outro de soro, Menescal não se conteve. Começou a chorar. Mas Ronaldo nem o deixou continuar: “Vai de tinto ou vai de branco, Menesca?”

Conheci bem Ronaldo, fui seu amigo. Exceto por ter se casado com Elis Regina, não era um homem particularmente corajoso. Ao contrário, tinha medo de dentista, de avião e até de subir ao Pão de Açúcar pelo bondinho. Por seu histórico, a hipótese de uma doença que lhe provocasse dor física ou qualquer incapacidade deveria ser-lhe intolerável. Mas, naquele momento, diante de Menescal, Ronaldo usoua grande arma contra o tumor: o humor. Isso pode ter me inspirado quando, anos depois, eu próprio me vi em apuros.

Em 2005, fui diagnosticado com um câncer de base de língua. O tratamento, sob o Dr. Jacob Kligerman, foi longo e difícil, mas bem- sucedido. Completei-o e, em 2006, sofri um infarto. Aplicaram-me um stent e me mandaram para casa. Mas, em 2007, tive de me submeter a uma cirurgia que vinha conseguindo adiar, a de próstata. Passaram-se cinco anos, durante os quais quase me esqueci de que era mortal. E, então, no domingo de Carnaval de 2012 — às 6h30 da tarde, no Leblon, com todos os blocos na rua e as vias fechadas —, tive uma encefalite viral que, essa, sim, podia ter me levado para o beleléu. 

Engraçado, sempre que penso nessas passagens, associo-as a algum momento que, de um jeito ou de outro, provocou risos. Ao ouvir de Jacob o diagnóstico de câncer, minha primeira reação foi resmungar, “Droga! Vou atrasar o livro!” — referindo-me ao livro Carmen — Uma Biografia, que estava finalmente começando a escrever depois de quatro anos de apuração e pesquisa. E atrasei mesmo — em dois meses —, mas, um dia, dei o livro por pronto, e ele saiu a tempo de ser um grande sucesso.

O tal infarto também não poderia ter vindo em pior hora. Dali a dois dias, uma quarta-feira, eu deveria estar atrás de uma mesa, na Travessa de Ipanema, recebendo os amigos e autografando exemplares de meu livro Tempestade de Ritmos — Jazz e Música Popular no Século XX. O infarto levaria apenas dois dias para se resolver, mas, naquele momento, ninguém podia garantir isso — donde o evento deveria ser adiado. Mas, àquela altura, já não havia como disparar o desconvite pelo correio. O jeito era plantar uma nota no jornal, mas que não tivesse um caráter muito dramático. O resultado foi esta que saiu na coluna de Ancelmo Gois: “Ruy Castro ficou tão empolgado com os três gols marcados por Obina pelo Flamengo neste fim de semana que teve um pequeno infarto. Com isso, fica adiada a noite de autógrafos de seu livro tal”.

Para quem não sabe: Obina era um goleador baiano que, já há meses no Flamengo, ainda não marcara nem um gol. E, de repente, naquele domingo, marcara três. Caso mesmo para infarto. Mas nada superou a maneira com que, em meio a uma crise convulsiva provocada pela encefalite viral naquele domingo de Carnaval, fui transportado para a emergência do Hospital Miguel Couto. Como se tira de casa um sujeito inconsciente, debatendo-se ferozmente e pesando mais de 100 quilos? Numa cadeira, claro, mas quem aguenta o peso? Os porteiros não estavam conseguindo. Então um deles foi à rua, chamou um dos rapazes que desfilavam no Simpatia É Quase Amor e pediu-lhe ajuda. Com ele fazendo força, finalmente me puseram no carro. Bastou isso para que, ao acordar e ser informado do que se passara, eu chegasse à conclusão de que tinha ido para o hospital nos braços dos foliões.

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Ossos e parafusos (Cora Rónai - carioca, é pioneira no jornalismo de tecnologia)

Eu estava tomando café num escritório na Avenida Presidente Vargas quando, olhando pela janela, vi uma foto irresistível lá fora. A tarde caía, e uma vaga bruma (que provavelmente era poluição) ressaltava os raios de sol que iluminavam a Candelária, em poética diagonal.

Me despedi às carreiras das pessoas com quem estava e desci aos saltos os cinco lances de escada. Mas a foto não chegou a ser feita. Antes que eu chegasse ao outro lado da rua, uma moto surgida do nada me atirou longe, transformando em farelo de osso o que, uma fração de segundo antes, era um joelho em perfeito estado de funcionamento.

A minha vida nunca mais foi a mesma. Até aquele momento, eu era tão inocente em fraturas que achava que, com duas ou três semanas de gesso, estaria pronta para outra. Ainda espichada na maca do hospital, perguntei ao médico se, dali a 15 dias, eu poderia ir a Florianópolis, onde participaria de um congresso. Na sequência, iria a Buenos Aires, para tomar parte em um evento sobre mobilidade (ha, ha, ha) e fecharia o mês no Festival de Cinema da Amazônia, onde, além de me divertir muito, esperava colher umas crônicas.

O doutor me olhou com um misto de pena e de espanto, assim como quem olha para um ET que quer telefonar para casa através de uma operadora de celular brasileira. Deve ter ficado na dúvida se a pergunta era efeito da morfina ou de alguma pancada não registrada na cabeça. Talvez por isso eu tenha sido mandada, logo depois, para mais uma bateria de exames. 

No dia seguinte, fui operada. Fera na solução de quebra-cabeças, o cirurgião conseguiu juntar todos os caquinhos do joelho: tascou uma placa de um lado, outra do outro, e atarraxou nove parafusos pelo meio. Quando vi pela primeira vez o exame de raios X, que lembra uma Torre Eiffel de cabeça para baixo, achei que nunca mais passaria por um detector de metais sem apitar. Hoje, muitas viagens depois, posso informar com segurança: ferragens instaladas no joelho não apitam. 

Uma longa travessia me aguardava até voltar a fazer aquilo que, antes, me parecia a coisa mais simples do mundo: andar, pura e simplesmente andar. Num primeiro momento, os dias pareciam não acabar nunca. Passei semanas anotando numa caderneta o número de passos que dava com as muletas: cinco até o banheiro, cinco até a cama, 15 para a sala (onde passava o dia estirada no sofá), seis até o outro banheiro... Cada um desses passos doía mais do que o outro, e cada noite era mais comprida do que a anterior. A sensação que eu tinha é que não estava melhorando nada — e ir dormir trazia implícito o desespero de acordar para um dia seguinte exatamente igual ao que havia passado.

Mas, pouco a pouco, passo a passo, quase imperceptivelmente, graças à tenacidade das duas fisioterapeutas a quem coube a árdua tarefa de fazer com que eu me mexesse -- quando tudo o que queria fazer era ficar parada --, as coisas foram melhorando. Um dia, larguei o andador.

Depois, larguei também uma das muletas; logo, a outra. Simples no papel, essa progressão foi complicada na vida real. Um dia, ainda na fase das duas muletas, me julguei uma vencedora por conseguir chegar sozinha até a geladeira. Abri a porta, vi uma sopinha apetitosa pronta para ser aquecida... e fiquei nisso, porque quem usa duas muletas não tem mão sobrando para pegar travessa na geladeira.

Pouco tempo depois, quase quebrei o mindinho da perna boa dando topada na sua própria muleta -- e nem ao menos pude sair pulando na outra perna, como se faz em caso de topada desde que o primeiro hominídeo topou com a primeira pedra.

Ao longo do processo, aprendi que, quando a gente se quebra a ponto de ter que reaprender os mínimos movimentos, deixam de existir mínimos movimentos. Todos os movimentos, sem exceção, passam a ser vastos, surpreendentes. De modo que, em troca de muita dor, algumas cicatrizes e umas tantas placas e parafusos, ganhei a consciência do milagre da locomoção.

Não foi uma troca exatamente vantajosa, mas era o que tínhamos. Aprendi ainda que o que acontece aos ossos afeta a alma. Não recomendo o sofrimento físico como terapia de autoconhecimento, ainda que reconheça suas virtudes didáticas. Através dele, mudei a minha percepção do tempo, redefini prioridades, descobri as fronteiras dos meus nervos e tendões.

Hoje, passados sete anos, ainda presto atenção aos meus passos. Ainda tenho dificuldade para subir e descer escadas, e não consigo andar mais de dois ou três quilômetros sem que o joelho proteste raivosamente, mas o mundo é vasto e variado, e ainda tenho muita coisa para ver antes de me dar por vencida.

Muralhas de castelo, torres de igreja, mosteiros encarapitados montanhas, mirantes – me aguardem, que já estou indo!

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