Por daniela.lima

Rio - A história está no filme. Durante um encontro, Cosme Alves Netto, então Curador da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, recebe um telefonema, interrompe a conversa e convida seu assustado visitante para um passeio a destino ignorado. Os dois embarcam no inconfundível fusquinha de Cosme sem trocar uma palavra até chegarem a um Batalhão Militar em plena Avenida Brasil. Cosme desce, se dirige ao lixo e começa a recolher o fetiche de toda a sua vida: latas de filme que alguém lhe informara estavam sendo jogadas fora pelos militares. 

Aurelio Michiles dirige o documentário ‘Tudo por Amor ao Cinema’Reprodução Internet


Essa e outras histórias compõem a narrativa do documentário ‘Tudo por Amor ao Cinema’, do cineasta Aurélio Michiles, que estreia hoje nos cinemas do Brasil. Além de retrato afetivo do mais carismático e batalhador Curador da Cinemateca do MAM, o filme é um registro luminoso de um período intenso e dinâmico da vida social, política e cultural do país.

Amazonense como Cosme, Aurélio parte das origens familiares do ativista cultural para mostrar sua trajetória de Manaus ao Rio, passando pela formação católica progressista e o precoce interesse pelo cinema. É no Amazonas que Cosme, filho de pai afortunado, sedimenta as características básicas de sua personalidade, forjada não apenas pelo apreço por colecionar filmes, mas acima de tudo por um incontrolável desejo de exibi-los no cineclube que ele mesmo criou.

Mais do que um apaixonado por filmes, Cosme era um agregador que curtia o encontro e sobretudo os debates após as sessões. A marca de ativista cultural se consolidaria de vez nos anos 60, quando assume a Cinemateca do MAM no Rio de Janeiro e transforma o espaço no patrimônio inestimável da geração que fundou o Cinema Novo, o Underground, ou ‘údigrudi’, e resistiu aos abusos da ditadura militar vendo, realizando e debatendo filmes.

“Cosme fazia cinema de uma outra maneira”, afirma o diretor Cacá Diegues, que por sinal conheceu Glauber Rocha na sala da Cinemateca. Era, no fundo, uma espécie de ‘promoter’ intelectual, que em vez de seduzir o ‘jet set’ cativava estudantes, universitários e artistas em gestação. Evidente que essa capacidade aglutinadora, justamente num período de desaglutinação da inteligência, fez de Cosme um alvo fácil para a ditadura que o prendeu e torturou por duas vezes.

No filme, Aurélio Michiles, ele mesmo um discípulo de Cosme, conta essa história apoiado na edição de imagens de filmes que o próprio Cosme adorava. O espectador verá sequências raras de filmes do conterrâneo Silvino Santos, um dos pioneiros do cinema no Brasil, do Rio antigo, das chanchadas, do Cinema Novo, do ‘údigrudi’ e, claro, do essencial Serguei Eisenstein.

Provavelmente por conta dos direitos autorais, não vemos sequências do filme favorito de Cosme, ‘Cantando na Chuva’. Mas lá estão todas as referências e até a tocante revelação do amigo amazonense Márcio de Souza, que revela deixar anualmente a TV de casa ligada exibindo uma sessão especial do musical de Stanley Donen “só para o Cosme ver”. A imagem, carregada, de poesia traduz a força da presença deste personagem que até hoje continua por aí, orientando e apoiando os que de alguma forma fazem cinema no Brasil, seja produzindo, criticando ou mesmo ocupando a cadeira que um dia lhe pertenceu.

Você pode gostar