Por tiago.frederico

Rio - ‘A mulher do fim do mundo’ é disco cheio de som e fúria. A valentia de Elza Soares dá o tom deste disco que passa o samba pelo filtro do rock, tocando em assuntos punks como a violência doméstica contra a mulher, tema de ‘Maria da Vila Matilde’, samba roqueiro de Douglas Germano.

Viabilizado pelo projeto Natura Musical, o disco faz samba em esquema ‘noise’. O barulho feio, que faz a cuíca chorar com a batida dos ‘riffs’ sujos das guitarras, é produzido por alguns dos melhores músicos da cena contemporânea de São Paulo. Mas é Elza, resistente carioca de presumíveis 85 anos de vida (e declarados 78 anos), quem dá o sentido do disco brilhantemente produzido por Guilherme Kastrup sob a direção artística de Romulo Fróes e Celso Sim.

Elza Soares canta samba em esquema ‘noise’ no álbum ‘A mulher do fim do mundo’%2C trabalho visceral e já antológico%2C gravado com músicos da cena contemporânea de São PauloDivulgação / Stéphane Munner

Perfil da dina do crack

Tratado sem reverência, o samba renasce das dores de Elza neste disco arrebatador e desde já antológico. Elza é leoa já habituada a lutar contra as vicissitudes da vida (ela recentemente perdeu mais um filho). Mas a leoa também vira a loba voluptuosa, cheia de amor para dar em ‘Pra fuder’, composição de Kiko Dinucci, guitarrista fundamental na arquitetura da maioria das 11 músicas do disco, aberto ‘a capella’ com o canto pungente de ‘Coração do mar’ (poema de Oswald de Andrade musicado pelo compositor José Miguel Wisnik).

Música turbinada com os afro beats dos sopros da banda Bixiga 70, ‘Benedita’ perfila a personagem-título, ‘chefona’ do crack e da zona. Como se já não temesse nem o fim do mundo, Elza canta um Brasil à beira do apocalipse e encara a morte de frente no com passo de ‘Dança’, parceria de Romulo Fróes e Cacá Machado. Já ‘Solto’, composição de Marcelo Cabral e Clima, tem versos concretistas que se alinham com os traços da sagaz capa do álbum.

Somente músicas inéditas

‘A mulher do fim do mundo’ é álbum que também se diferencia na discografia de Elza Soares — iniciada em 1959 — por trazer somente músicas inéditas em seu repertório demolidor. A cantora sempre lançou músicas inéditas, mas em discos com regravações em que, justiça seja feita, Elza imprimiu a marca forte de sua voz rouca. A alta qualidade do repertório inédito de ‘A mulher do fim do mundo’ valoriza o encontro histórico desta cantora que traz a bossa negra na garganta privilegiada.

Alguns músicos de ‘A mulher do fim do mundo’ (os do quarteto Passo Torto) acabaram de lançar álbum com Ná Ozzetti. Mas engoliram a cantora projetada no Grupo Rumo. Com Elza Soares, é diferente. É ela — punk por natureza — quem conduz o samba em esquema ‘noise’ do disco.

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