Rio - A poderosa voz de Guilherme Isnard e a poética sonoridade do ZERØ estão de volta. Um dos ícones do rock nacional na década de 1980, a banda faz show sexta-feira, às 21h30, no Teatro Solar de Botafogo, com uma nova (e não menos talentosa) formação. No palco, a velha e contagiante pegada para celebrar os 30 anos do LP 'Carne Humana', um dos mais importantes álbuns da geração BRock, com os consagrados e melódicos hits "Quimeras" e "A Luta e o Prazer".
Neste reencontro, a banda também brindará o público com sucessos como "Agora Eu Sei" e "Formosa", do álbum 'Passos no Escuro', que, em 1985, frequentou os primeiros lugares de execução na TV e nas rádios AM e FM — vendeu mais de 120 mil cópias e ganhou um Disco de Ouro. Emocionado, Guilherme Isnard não vê a hora de voltar à ativa em solo carioca, agora na companhia dos músicos friburguenses Nivaldo Ramos (baixo), Daniel Viana (guitarra), Gustavo Wermelinger (bateria) e Caius Marins (teclado).
1) O que você espera desse reencontro com o público carioca após tanto tempo?
Sou um carioca do Leblon que em 1978 mudou para São Paulo onde formei o ZERØ. Mesmo sendo considerado um músico paulista, e o bairrismo sempre existiu, o Rio de Janeiro nos recebeu muito bem. Nos anos 80 lotávamos as temporadas no Teatro Ipanema e confio que repetiremos o êxito no Teatro Solar de Botafogo. É o que a animação nas redes sociais aponta.
2) O que a banda tem a oferecer neste show?
Será nosso segundo show na turnê comemorativa do trigésimo aniversário do LP Carne Humana. Apresentaremos “Quimeras”, “A Luta e o Prazer” e “Abuso de Poder” que não poderiam ser mais atuais, mas é claro que tocaremos também “Agora Eu Sei” e “Formosa”, hits do disco Passos no Escuro, músicas do CD Quinto Elemento e relembraremos algumas canções dos colegas de geração para contextualizar historicamente o momento da composição desse repertório.
3) O que representa voltar à ativa depois de tanto tempo?
Pedra que rola não cria musgo e o pedregulho aqui estava quieto cuidando dos filhos e acumulando limo já há muito tempo. A única coisa que me deixa mais feliz do que o palco é o estúdio de ensaio. Adoro ensaiar. Ver um arranjo tomar forma é assistir ao encontro de cada 'I' com seu pingo. A repetição que entedia alguns, me estimula. Progredir através dos erros é uma metáfora da vida.
4) Por que a opção por uma nova formação?
Não existe só uma causa. A primeira razão é geriátrica: a turma da formação clássica está toda em torno dos 60 anos e sem muita disposição para encarar as agruras da estrada. A segunda é geográfica. Estamos espalhados por três estados: Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo, o que representa um problema econômico (passagens, hospedagens) e logístico, com a distância impossibilitando a rotina de ensaios. Além disso, o ZERØ encerrou as atividades no final dos 80, início dos 90, justamente por concordarmos que havíamos esgotado nosso assunto. Desde então, já nos reencontramos diversas vezes nos palcos e estúdios e eu sou o único que traz novas canções.
5) Você hoje mora em Nova Friburgo e 'escalou' músicos locais. Por quê?
Nova Friburgo é um reconhecido celeiro de talentos e excelência musical. Berço natal do mestre Benito de Paula e artístico de Egberto Gismonti, Marcos e Paulo Sérgio Valle, entre muitos outros. Foi onde aprendi a tocar um instrumento, a representar, a cantar e onde gravei meu primeiro disco, como membro do Coral Infantil do Colégio Nova Friburgo FGV, onde fui aluno interno nos anos de 1967/68. É uma honra e um privilégio tocar com músicos do gabarito do baixista Nivaldo Ramos, do guitarrista Daniel Viana, do baterista Gustavo Wermelinger e do tecladista Caius Marins, todos com extensa carreira e nomes gravados na história do rock serrano. Mal posso esperar pelas novas composições.
6) Após o Festival de Friburgo e o show no Rio, vocês pretendem sair em excursão. Qual o futuro da banda Zero?
Deus no comando, sempre! A princípio recebi um convite para o excelente Festival de Inverno da prefeitura municipal e me preparei para fazer o primeiro show na cidade em que moro desde 2013. Não esperava que essa apresentação causasse tanto alvoroço, mas o telefone não para de tocar e então me dei conta de que tínhamos tudo: o carinho dos fãs de três gerações, um excelente espetáculo e um bom gancho para cair na estrada. O Rio é apenas a primeira estação dessa jornada, ainda temos muito a realizar: o desejo antigo de registrar em vídeo uma apresentação ao vivo, a composição de um novo repertório e revisitar as capitais e interiores que nos suplicam uma apresentação nos comentários das redes sociais.
7) Como você se define como cantor?
Essa percepção mudou muito através do tempo. No início me considerava um bardo, não um cantor. Alguém que, por falta de quem o fizesse, ousava ser porta-voz melódico de um pensamento ou de uma epifania. Nesse sentido, é essencialmente o que continuo a ser. Só canto as minhas “verdades”, minhas experiências pessoais. Às vezes, por licença poética, carrego um pouco nas cores, mas minha composição é basicamente vivencial. À força de ter a voz constantemente elogiada, passei a me reconhecer como cantor, mas creio que o que melhor me define é a personalidade vocal: não sei se canto bem ou mal, mas tenho certeza de que minha voz é inconfundível.
8) Como avalia o Rock dos anos 80?
Defendo a tese de que a década de 80 extrapola a função do calendário. Não retrata apenas um período no tempo, uma etapa cronológica, ou um sentimento nostálgico. “Anos 80” é sinônimo de música boa, ponto. Nossa geração conseguiu derrubar pela primeira vez o predomínio da programação de música estrangeira no rádio. Adaptamos a difícil tonicidade paroxítona do português ao ritmo importado e criamos a possibilidade poética de expressar complexas questões políticas, existenciais e sociais. Fomos tanto pioneiros quanto desbravadores e jamais poderíamos projetar um futuro tão negro quanto este em que vivemos.
9) Como insere a banda Zero neste período?
Nos últimos anos me ressenti em várias ocasiões de não termos nossa contribuição lembrada nos muitos documentários, livros e entrevistas sobre a geração. Foi só recentemente que a ficha caiu e realizei que os nossos pares, os críticos, jornalistas e historiadores têm dificuldade em localizar nossa obra nessa década. Sem cabotinismo eu penso que, com raras exceções como a banda Egotrip, o que criamos com o ZERØ em termos melódicos, rítmicos, harmônicos, estéticos, líricos e temáticos, avançava paralelo àquela cena.
10) O que levou ao fim aquela geração?
Alguns de nós morreram, outros quase. Não existe droga mais poderosa que o aplauso, a sensação de ser adorado no palco é inigualável, e você precisa estar muito firme e equilibrado espiritualmente para não confundir-se com o “ídolo”. É fácil cair na tentação de prolongar a euforia do show com o uso de álcool, sexo e aditivos químicos e os anos 80 foram a década da cocaína, muitos exageraram. Houve também as circunstâncias econômicas. O Plano Cruzado num extremo e o fim da isenção de impostos das indústrias fonográficas e o sequestro da poupança
no outro. Mas a minha teoria conspiratória especula que as gravadoras multinacionais não apreciaram muito a inversão do paradigma de execução radiofônica, quando a música nacional passou de 20% à 80% do conteúdo da programação, e retaliou.
11) O que poderia ter sido feito para impedir isso?
Uma união classista como a que parece haver entre os axezeiros, sertanejos, pagodeiros e funqueiros poderia ter garantido nossa sobrevivência.
12) Acredita que o rock nacional possa voltar a ter um movimento semelhante ao ocorrido na década de 80?
Jamais! Aquilo foi raro. Um oásis criativo em meio ao deserto de ideias. Uma explosão de rebeldia e criatividade juvenil decorrente do acúmulo de pressão em consequência dos anos de ditadura. Além disso, nós líamos e ouvíamos música (o melhor do rock no planeta foi feito entre os 50 e os 80) como algo sagrado e isso acabou. Ninguém escuta mais o lado A de um LP durante semanas, até decorar cada solo e memorizar cada detalhe de arranjo antes de virar para o lado B. Isso é claramente uma generalização e sim, existem exceções, mas a maioria da garotada de hoje não lê, joga videogame. Não ouve trabalhos conceituais e transformadores, coleciona faixas isoladas de popularidade efêmera. Não conversa, tecla. Não tem momentos de introspecção e concentração, mas de dissipação e distração. Não sabem falar, não têm vocabulário, não acumulam conhecimento e se afogam em informação. É uma geração superficial, frívola, arrogante e vaidosa de nada, que nunca pisou numa biblioteca, foi a um museu ou conhece música clássica. São pretensos sabichões digitais, mas se ficarem a Wikipédia, se correrem o Google Chrome. Pior ainda são os exemplos e a cultura “balada, birita e pegação”. Jamais, em tempo algum, na história da música popular brasileira vivemos um tamanho empobrecimento. É triste e, a meu ver, irreversível. Mas eu já errei antes, quando achava que não retroagiríamos e veja aonde chegamos.
13) Em 1988 a banda conquistou reconhecimento internacional quando a artista Tina Turner e tocou para 200 mil pessoas no Maracanã. O que representa isso hoje?
Fazer parte do show que consta no Guinness Book como a maior plateia de uma artista solo no século XX foi uma grande honra e está perpetuado pela história. Orgulhamo-nos de termos sido escolhidos por ela, que tinha ao dispor todo o ótimo elenco da gravadora: Legião Urbana, Paralamas do Sucesso, Kiko Zambianchi, Vinícios Cantuária, 14 Bis... Hoje isso representa uma esperança desenhada pela trajetória de Tina Turner, que alcançou o sucesso na juventude cantando ao lado de um marido abusivo e influente na indústria musical, e que amargou o ostracismo após o divórcio até ser “redescoberta” pelos Rolling Stones e conseguir voltar ao topo com 50 anos de idade ao gravar “We Don’t Need Another Hero”, canção tema do filme Mad Max. Não passamos por nenhuma violência doméstica, mas sofremos o mesmo hiato na carreira. Se ela pôde ressurgir como fênix, confio que nós também podemos. Nossa hora chegou e essa entrevista é mais um dos sinais, gratidão.