Rio - Em entrevista recente a jornalista Milly Lacombe para a revista “TPM”, a ginasta Laís Souza, que ficou tetraplégica depois de um acidente de ski em janeiro de 2014, disse: “Eu tenho uma namorada, sou gay há alguns anos. Já tive uns namorados, mas hoje estou gay.”
Laís engrossa uma lista que vai ficando cada vez mais longa, a das celebridades assumidas, que ganhou vários adeptos nos últimos tempos. No Brasil, essa lista cresce numa velocidade bem menor do que, por exemplo, nos Estados Unidos, onde tem gays no exército, na política, gays na música, a apresentadora mais popular da TV é lésbica, atores gays se casam em cerimônias românticas e são fotografados com marido e filhos, atletas gays estão em posições de destaque em esportes coletivos e individuais.
Isso tudo é muito novo, e mostra que mudanças estão em pleno curso. O iGay publicou levantamento divulgado pela revista americana “Advocate” que mostra personalidades gays americanas que morreram no armário. Na lista estão os atores Rock Hudson (morto em 1985), Anthony Perkins (1992), o pianista Liberace (1987) e o ex-prefeito de Nova York Ed Koch (2013). Por um motivo ou por outros, eles nunca se assumiram.
O caso mais notável é o de Liberace. Ele era o rei das plumas e paetês, nada poderia ser mais gay do que o seu piano coberto de espelhos, seus ternos bordados de dourado, sua maquiagem, seus casacos de pele que se abriam como um leque – e , claro, seu namorado. Mas fez de tudo para permanecer no armário, tendo inclusive processado veículos da imprensa que afirmaram que ele era gay. Morreu em decorrência da Aids em 1987.
Milly Lacombe, lésbica assumida, que vive atualmente em Nova York, pensou numa situação fictícia. “Vamos supor que, num belo dia, hipoteticamente falando, uma nuvem de moralidade e sinceridade baixasse sobre todos os seres humanos do planeta e, nesse histórico dia, todos os gays saíssem do armário: celebridades, políticos, jogadores de futebol, artistas. Dado o número de gente que ia dizer ‘eu sou gay’, é de se supor que no dia seguinte o preconceito tivesse morrido ou sido reduzido a uma coisa bem pequena porque todos teriam um irmão, um grande amigo, um ídolo que teria se assumido gay”, devaneia ela. “Não se assumir é, em alguma escala, sentir vergonha de si mesmo, e esse recado é o pior de todos.”
No Brasil, no que se refere a gays assumidos, temos vários exércitos de um homem só. Laís Souza é a primeira atleta a dizer com todas as letras: “Eu sou gay”. O deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), colunista do iGay, é o único político assumidamente gay eleito no Brasil. O escritor e diplomata Alexandre Vidal Porto, que já serviu cinco embaixadas brasileiras pelo mundo, é o único membro do Itamaraty que vive sua homossexualidade à luz do dia.
“Há outros diplomatas tão gays quanto eu, ou mais, mas eu resolvi tomar uma atitude mais política em relação à minha homossexualidade. Acho importante que existam modelos para que as pessoas que vêm depois da gente entendam que a homossexualidade faz parte da natureza humana e que não tem nada de limitante e redutor em assumir”, disse ele. “Assumi publicamente para que as pessoas mais jovens da carreira diplomática entendam que você pode ser um diplomata competente, responsável, respeitado e homossexual.”
Jean Wyllys entende que ser um gay assumido também dá a ele um papel de referência, de ser um exemplo positivo para outras gerações. Mas não sem um custo. “O fato de eu ser um deputado federal gay assumido atrai para mim um ódio expresso através do insulto, da difamação e das injúrias nas redes sociais. Causa incômodo me ver falar tão orgulhoso e sem culpa da minha homossexualidade.”
ONDE ESTÃO OS ARTISTAS GAYS BRASILEIROS?
No campo das artes, onde as pessoas são teoricamente mais abertas, os casos de homossexuais dispostos a tomar posição ainda são poucos. Muitas das cantoras brasileiras são lésbicas, mas a absoluta maioria prefere não falar do assunto. Com exceção de Adriana Calcanhotto, que era casada com a cineasta Susana de Moraes (1940-2015), de Cássia Eller (1962-2001), que nunca escondeu nenhum aspecto da sua vida de ninguém, de Leci Brandão, que foi a primeira a se assumir, de Daniela Mercury, que orquestrou a apresentação de sua mulher ao público com fotos e declarações de amor nas redes sociais, e de Ângela Ro Ro, muitas outras seguem na sombra.
"A ÚNICA CANTORA LÉSBICA"
Ângela Ro Ro, em cena dos anos 80/90 que foi incluída no filme-documentário “Cássia Eller”, brincava em seus shows: “Vocês já sabem: eu sou a única cantora lésbica da MPB”. Até Ana Carolina, musa das lésbicas românticas, foi discreta ao declarar em entrevista para a “Veja” em 2005: “Sou bi, e daí?”. A cantora Preta Gil, que já afirmou ser bissexual, brincou com a afirmação da amiga: “Se a Ana Carolina for bi, eu sou penta!”
Milly Lacombe sabe, por percepção e experiência, que se “a gente trata com naturalidade, o mundo tende a ver com naturalidade”. “Não quero sugerir que a pessoa chame uma coletiva para dizer ‘eu sou gay’, mas tratar com naturalidade, ser quem é também em ambiente público e não se esconder já ajudaria muito”, diz ela. “Mesmo quem tem um pouco de coragem para se assumir, na hora H diz: eu sou bi, o que talvez seja um caminho, e é certamente melhor do que nada, mas a verdade é que muitas dessas pessoas são apenas gay, tipo um 6 (o número máximo) na escala Kinsey, e não exatamente bi…”
EIS A QUESTÃO
Claro que sair ou não sair do armário é uma questão pessoal. Com relação aos atores famosos, há um questionamento profissional a ser levado em consideração. Um ator gay assumido vai seguir sendo escalado para papeis de galã na novela se tiver um discurso aberto sobre sua homossexualidade? Um apresentador de TV ainda vai ser convidado para estrelar comerciais se disser que é casado com um homem?
Em entrevista à revista “Serafina”, o ator, roteirista e diretor Miguel Falabella falou e não falou do assunto. “Detalhes não interessam a ninguém. Meus personagens são a minha maneira de fazer ativismo. Não preciso sair sacudindo bandeira na parada gay.”
E falou mais: “Fui casado a vida inteira. Dou muito beijo na boca. Se não fosse feliz nessa área, não seria o artista que sou. Sempre fui honesto, coerente. Nunca fiz número nem saí posando de outra coisa. Nunca escondi o que eu era para ninguém.”
Marco Nanini também decidiu falar sobre sua sexualidade pela primeira vez em uma entrevista para a extinta revista “Bravo”, em novembro de 2011. “Às vezes, pintam umas namoradas, uns namorados… Namoradas, não. Namorados… Mas, se não pintam, sem problemas. Já vivi o que necessitava viver nessa seara”, disse ele. Falou sem falar, e de um jeito que fica parecendo que o gay só é gay quando está envolvido com alguém do mesmo sexo.
ASSUNTO DELICADO
Não tem problema, cada um vive como quiser, e o iGay não quer fazer patrulha da posição de ninguém. Mas será que um ator precisa ser um galã sedutor na vida real para convencer como um galã sedutor na novela? Não é exatamente o contrário: o ator faz qualquer papel, interpreta qualquer personagem, não é essa a própria definição de interpretar? Ou deve fazer parte da mística do ator manter certo mistério sobre si mesmo?
“É um assunto delicado porque envolve a vida de cada um e todos deveríamos ser soberanos sobre nossas vidas”, diz Milly. “Num mundo justo e igual, acho que cada um deve fazer o que quiser e não dar satisfação a ninguém. Mas nesse nosso, cruel, injusto e desigual, enquanto houver gays sendo assassinados e espancados apenas porque são gays talvez fosse dever cívico e moral e ético sair do armário. Acho que celebridades que omitem a todo o custo, ou que arrumam uniões de araque com gente do sexo oposto para ‘parecer normal’ contribuem muito para que o ‘ser gay é errado’ continue ecoando por aí.”
Reportagem: Ana Ribeiro