Por thiago.antunes

Rio - Às vésperas do segundo turno turno das eleições, pouco se tem falado de um tema fundamental para o aprimoramento da democracia: a transparência. Para ajudar a entender um tema tão complexo, o ‘Encontros do DIA’ reuniu três experts no assunto: Pedro Cunca Bocayuva, doutor em Planejamento Urbano pela UFRJ; Manuel Thedim, diretor do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets); e Junior Perim, agitador cultural do circo social Crescer e Viver, e ex-secretário de governo de São Gonçalo. Também participaram da conversa os jornalistas André Balocco, editor do projeto Rio Sem Fronteiras, Eugênia Lopes, editora de Política, e o repórter Leandro Resende. A seguir, os principais trechos.

'Só por na Rede não resolve'Ernesto Carriço / Agência O Dia

O DIA: Quando se fala em transparência nos governos, há um senso comum: frequentemente são lembradas as divulgações de dados na Internet, como prestações de contas de campanhas eleitorais ou gastos públicos, por exemplo. É suficiente?

Cunca: Há uma grande confusão sobre o termo. Temos um cenário em que a transparência não garante a boa aplicação dos recursos públicos, e ela não necessariamente significa um bom governo. Mesmo assim, o tema é central na atual política. Muito se fala em conceitos como os de governança e parceria, que são ideias que, em geral, trabalham menos com a questão do bem público, e estão mais ligadas às ideias de eficácia e eficiência, padrões das gestões de empresas privadas.

Thedim: A ideia de transparência deveria ir além do conceito que temos hoje. Quando falamos nesse conceito, deveríamos olhar e exigir que as ações do governo se espraiem para a sociedade. Porém, somente isso não é suficiente. O mais importante é entender a eficácia das políticas públicas. Posso ter uma obra de 5 trilhões de reais com todos os gastos certos, transparentes e aprovados, mas e a viabilidade da obra? Ela pode não ser útil para a sociedade, e isso também precisa ser levado em conta neste debate.

Perim: Quando eu falo em transparência, também penso no resultado da política pública. É absolutamente desnecessário que o Estado pense numa lógica de transparência do gasto, e da eficiência do emprego do dinheiro público. É muito fácil divulgar notas falsas com aquilo que foi empregado nas obras, por exemplo. Isso é algo absolutamente fácil de fraudar. Na realidade, o povo está preocupado com o resultado que as políticas públicas vão ter em suas vidas, quer que as obras funcionem e tenham resultado práticos.

'Como está%2C a atenção se volta apenas para a gestão do recurso%2C sem se cuidar daquilo que é entregue'%2C afirma ThedimErnesto Carriço / Agência O Dia

Mecanismos de participação e transparência foram garantidos pela Constituição de 1988, como os conselhos gestores de políticas públicas. Qual a situação deles hoje?

Cunca: A Constituição de 1988 abriu um conjunto novo de saídas que estão ligadas à democratização. Vou lembrar apenas uma: o Plano Diretor participativo, instrumento dos governos municipais, que prevê a presença da população na definição da política pública urbana, em reuniões abertas. São paradigmas democráticos muito importantes.

Perim: Esses mecanismos ficaram viciados ao longo do tempo e hoje já não têm muita representatividade. Quem vem dos movimentos da sociedade civil não acredita mais nesses mecanismos, e quem participa deles quer se aproveitar apenas desse espaço para dali ocupar um cargo público. Além disso, o que a gente chama de transparência, no senso comum, é algo absolutamente falho. Vou dar um exemplo, que faz a gente pensar como as nossas ideias de transparência precisam avançar: quando alguém quer olhar como é o orçamento da saúde, recebe uma quantidade enorme de papel, e é só isso. Não há um filtro, ou controle para esclarecer estes dados. E isso é transparência...

Thedim: Às vezes, essas comissões e conselhos definidos pela Constituição são muito claras, com governo e sociedade civil participando da mesma comissão. O que acontece, após pouco tempo? A representação da sociedade acaba cooptada pelo governo, e isso é um problema de representatividade.

Cunca: O Brasil vive uma situação de transformação desde os anos 1980, e precisou criar, na Constituição, mecanismos para garantir a democratização do Estado, além de combater a ineficiência e o autoritarismo. O nosso problema, hoje, é que substituímos iniciativas que seriam importantes, como o orçamento participativo, por um pacto de governabilidade que inviabiliza essas reformas e a maior participação das pessoas.

As formas de acesso ao Estado ainda parecem muito engessadas. O orçamento participativo, por exemplo, é uma ideia que pouco foi colocada em prática no Brasil, e isso impede que as pessoas decidam onde empregar os recursos. A partir da questão orçamentária, como podemos fazer para articular as decisões políticas e orçamentárias?

'Precisamos unir elementos participativos e tecnologias para aproximar as pessoas da política'%2C afirma CuncaErnesto Carriço / Agência O Dia

Perim: A única solução possível é ampliar e radicalizar a democracia. O Estado inviabilizou os conselhos e os planos diretores, e negou a efetiva aplicação dessa história. O orçamento impositivo, do jeito que é hoje, não é razoável. O que precisamos nos perguntar é de que forma empoderamos a sociedade para participar das decisões da democracia. Vale destacar que surgiram novas esferas de participações públicas que nós ainda não conseguimos enxergar.

Thedim: A relação entre transparência e o público em geral vai muito além da questão da gestão do Estado. Falta transparência na ação política dos candidatos e partidos, que não falam quais são seus interesses, tampouco dizem aquilo que irão fazer . Nós não sabemos em quem votamos e no que essas pessoas acreditam. As práticas sociais também não são transparentes: que legitimidade tem o presidente da Associação de Moradores do Leblon, por exemplo? Ela presta conta a quem? Por que ela é a mediadora entre o estado e o território? Ninguém sabe. Falta transparência em muitas esferas.

Cunca: Esse discurso da transparência vem junto com a crise do nosso Estado. Há influência de elementos do clientelismo, privatização, presidencialismo de coalizão, que acabaram por não beneficiar esses elementos de transparência que apareceram no nosso pacto constituinte. Além disso, creio que o nosso problema seja a própria sociedade, que também não consegue pressionar os governos. Precisamos pensar nisso, e avaliar o atual cenário: nós não travamos um debate sobre as cidades, que são pessimamente governadas, e não há nenhuma prática de transparência que mude a correlação de forças no poder.

Ainda com foco nos gastos públicos, vimos neste ano um debate aceso sobre a quantidade dinheiro público que foi empregada na organização da Copa do Mundo do Brasil. Neste caso, a população não teve voz ativa para opinar sobre as obras, tampouco para dizer qual legado de políticas públicas que queria. Nós perdemos uma chance de criar mecanismos de transparência e participação da população durante a Copa do Mundo?

Perim: Que população que queria participar disso? Primeiro, é necessário dizer que qualquer governo que tivesse a chance de trazer uma Copa para o Brasil, traria. É a maior expressão da nossa cultura. O problema da população não é o detalhamento das cifras que foram usadas, o cara médio nem lê essas informações, porque não as entende. O que interessa saber não é se foram gastos milhões, bilhões, e sim como fazer para entrar no estádio e participar da festa. Além disso, o cidadão quer saber como ele vai se apropriar das obras de mobilidade urbana, e dos outros legados que estes megaeventos vão deixar.

Thedim: O legado das obras da Copa do Mundo, assim como a repercussão sobre os gastos, são pontos que eram para ter sido resolvidos pelos deputados escolhidos pelo povo. Se aqueles em que votamos fossem conhecidos, e deveria existir um canal aberto para construir uma Olimpíada. Nesse caso, poderíamos ter cobrado um evento que pensasse nos pobres, e deixassem um legado de qualidade de vida.

Perim%3A 'Não adianta ter um executivo para produzir e seis fiscalizando. Isso afasta o bom gestor'Ernesto Carriço / Agência O Dia

Em resumo, quais são, hoje, os grandes desafios para a prática de uma governança com elementos de transparência?

Cunca: Precisamos aproveitar elementos democráticos e participativos, usando novas tecnologias para aproximar o cidadão da política. Só colocar na Internet não resolve, e a reforma da política, como está se colocando hoje, precisa ir além. Não basta acabar com os financiamentos privados de campanha; boas práticas de transparência e governança exigirão uma reforma das estruturas do Estado, que envolva a discussão da qualidade do nosso ensino e do nosso modelo de desenvolvimento.

Perim: Precisamos reconhecer novas esferas públicas que existem em territórios populares, e suas lógicas de organização produtiva. Não vamos inventar uma nova realidade institucional. Existe uma nova lógica. Fico com medo de associar transparência ao universo do controle. Isso é ineficiente para entregar um bom bem público. Não adianta ter um executivo para produzir e outros seis para fiscalizar. Essa ideia da perfeição com o gasto público afasta os bons gestores da administração pública. É o que dizem: se o cara sair do cargo sem problemas com a fiscalização das contas, ou nada foi feito, ou houve corrupção forte. Eu não quero mais ser gestor público.

Thedim: O conceito de transparência foi capturado de uma maneira equivocada. Do jeito que está, a atenção está voltada apenas para a gestão dos recursos, sem que se cuide daquilo que é entregue. Não adianta um Estado grande ou pequeno que entrega serviços de má qualidade. É necessário pulverizar a tomada das iniciativas. Do contrário, a administração central não olhará para os territórios populares.


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