Por bernardo.argento

São Paulo - Em outubro de 1974, o Brasil estava em plena ditadura militar, comandado pelo general Ernesto Geisel; ainda em outubro, no dia 2, Pelé dava seu primeiro adeus ao futebol, atuando pelo Santos, ajoelhando-se no meio do gramado da Vila Belmiro, em um jogo válido pelo Campeonato Paulista contra a Ponte Preta; no dia 6, Emerson Fittipaldi tinha assegurado nos EUA seu segundo título mundial de Fórmula 1; as novelas de maior audiência no Brasil no horário das 20h eram "Fogo sobre Terra", de Janete Clair, na TV Globo, e "Ídolo de Pano", de Teixeira Filho, na TV Tupi; o single You Haven't Done Nothin', de Stevie Wonder, era a música mais executada nos EUA no final daquele mês de outubro, pela lista da revista especializada Billboard.

E em outubro de 1974, mais precisamente num dia 30 como esta quinta-feira, ocorreu aquela que é até hoje a maior luta de boxe de todos os tempos: a disputa do título mundial dos pesos pesados, entre Muhammad Ali e George Foreman, realizada em plena madrugada num ringue armado em um estádio de futebol, em Kinshasa, capital do Zaire, hoje chamado República Democrática do Congo.

Muhammad Ali discursa para os jornalistas que acompanhavam seus treinos antes da luta contra George ForemanReprodução

É irônico que nestes tempos onde o UFC domina a atenção da mídia, com seus combates ferozes e lutadores que já foram exageradamente batizados de "gladiadores do terceiro milênio", um confronto que ocorreu há quarenta anos ainda domine o imaginário dos fãs de esportes de luta, mesmo para os que ainda não eram nascidos em 1974. Mais do que uma simples disputa de um título mundial, o combate entre Ali e Foreman colocava frente à frente dois oponentes que representavam lados diferentes da própria sociedade americana na época.

Muhammad Ali, o desafiante, que anos antes teve seu título mundial cassado por se recusar a lutar pelo exército americano na Guerra do Vietnã, não fazia a menor cerimônia em politizar qualquer declaração pública. Após ter adotado a religião muçulmana e renegado o nome de batismo Cassius Clay, sempre que podia, em suas entrevistas, saia em defesa da causa negra e criticava o que chamava de opressão do sistema de governo.

Já Foreman, o jovem campeão que jamais havia perdido uma luta sequer, mesmo como amador, procurava fugir de polêmicas, mas costumava em sair na defesa do que chamava de “orgulho americano”. Seis anos antes do duelo com Ali, ao conquistar a medalha de ouro dos pesados nas Olimpíadas de 1968, na Cidade do México, desfilou pelo ringue com uma pequena bandeira dos Estados Unidos. Era uma resposta a dois atletas negros (Tommie Smith e John Carlos, dos 200 m rasos do atletismo), que foram expulsos dos Jogos por repetirem no pódio o gesto do grupo “Panteras Negras”, em apoio à luta pelos direitos dos negros americanos.

Para completar o cenário emblemático desta luta histórica, ela seria realizada no Zaire, um país encravado no meio da África negra e comandado com mão de ferro pelo ditador Mobutu Sese Seko, que tomou o poder graças a um golpe militar em meados dos anos 60 e lá permaneceu por 32 anos. Mobutu queria passar para a comunidade internacional uma imagem (falsa) de prosperidade do país, que ostentava alguns dos piores índices de pobreza e desenvolvimento social do planeta.

Ainda assim, ele bancou toda a organização da luta, pagando as milionárias bolsas dos dois lutadores e todas as despesas de transporte e hospedagem. Paralelamente à luta, foi organizado um grande festival de música soul, com nomes como James Brown e B.B. King. Aquela foi também a primeira grande luta promovida pelo polêmico empresário Don King, que organizou outros combates épicos de Mike Tyson e Evander Holyfield, apenas para ficar nestes dois nomes.

Tal combinação explosiva não poderia ficar somente resumida ao quadrilátero do ringue. “The Rumble in the Jungle” (A Luta na Floresta), como foi batizada, acabou servindo de inspiração para um livro-reportagem fantástico escrito pelo jornalista americano Norman Mailer, chamado “A Luta”, que relatou com detalhes o ambiente que cercou o combate. Também foi registrada no inesquecível documentário “Quando Éramos Reis” (When We Were Kings), de Leon Gast, Oscar de melhor documentário de 1997, registrando os bastidores e o clima que antecedeu o combate.

Um campeão dissimulado

Dentro do ringue, o que se esperava era que Muhammad Ali fosse massacrado. As próprias bolsas de aposta indicavam uma clara vantagem de Foreman, na proporção de 3 por 1. Primeiro, porque Ali já estava com 32 anos e havia sofrido bastante em sua luta anterior para derrotar Joe Frazier e poder ganhar o direito de desafiar George Foreman. Em compensação, o campeão, aos 25 anos, ostentava um cartel invicto de 40 lutas e 40 vitórias (37 por nocaute) e a fama de ter uma mão muito pesada.

Ali, que não era nada ingênuo, sabia do potencial destrutivo dos golpes de Foreman e passou o período que antecedeu a luta (cuja data original seria 25 de setembro, mas acabou sendo adiada devido a um corte no supercílio do campeão) preparando-se física e psicologicamente para superar seu oponente. Já no Zaire, gastava as sessões de treinamento levando socos e mais socos dos sparrings contratados pelo técnico Angelo Dundee – o mesmo que anos mais tarde treinaria o brasileiro Adílson Maguila Rodrigues –, simulando as situações pelas quais passaria diante de Foreman.

Além de apanhar, Muhammad Ali falava. E como falava! Recebia os repórteres quase que diariamente em sua concentração, localizada em Nsele, em uma vila localizada a 60 quilômetros do centro de Kinshasa, onde desfilava sua verborragia provocativa, que hoje em dia seria confundida com arrogância pelos politicamente corretos. “Vou demonstrar (...) por que eu não posso ser derrotado por George Foreman, e criarei a maior reviravolta da história do boxe, que vocês em sua ignorância e estupidez na verdade criaram em suas colunas. É por culpa de vocês que o público do boxe (...), acredita que George Foreman é formidável e que eu estou acabado”, disparou Ali em uma de suas coletivas, registradas por Mailer em “A Luta”.

Dentro do ringue, parecia que as previsões dos apostadores iriam se confirmar. Com a luta começando no inusitado horário das 3 da madrugada do dia 30 de outubro, para atender aos interesses da tevê americana, Foreman iniciou o combate buscando resolvê-lo rapidamente. Até o duelo com Muhammad Ali, a maioria absoluta das lutas do campeão tinham sido decididas por nocaute logo de cara. E Foreman castigava sem dó o desafiante, ao longo dos sete primeiros assaltos. Ali, com o corpo de 1m90 jogado às cordas, recebia os golpes e ainda provocava o rival: “Minha mãe bate mais forte do que você”, gritava Ali, deixando Foreman maluco.

O golpe de mestre foi dado no oitavo assalto. Já praticamente sem forças, Foreman não conseguia reagir à sequência de golpes de Ali. Até que faltando 20 segundos para o final do assalto, Ali saiu das cordas para acertar o rival quatro vezes, alternando a direita e a esquerda. O último golpe fez o campeão cambalear e, logo em seguida, receber o golpe final de Ali, que o jogou à lona. O que parecia impossível aconteceu: Muhammad Ali conseguira nocautear o até então imbatível George Foreman e recuperou o cinturão de campeão mundial dos pesos pesados.

Quarenta anos depois, a épica “The Rumble in the Jungle” ainda é um dos capítulos mais fantásticos da história do boxe mundial e, sem exageros, da própria história do esporte, e assim seguirá pelos próximos 40 anos, no mínimo.

Reportagem: Marcelo Laguna

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