São Paulo - A causa é a redução no preço da passagem do ônibus. A inspiração é mais ambiciosa: as revoluções no mundo árabe ocorridas nos últimos anos e sua atualização com os protestos na Turquia, que no dia 31 de maio levaram milhares de pessoas a contestar a truculência governamental contra cidadãos que se opunham à derrubada de árvores para a construção de um shopping na Praça Taksim, em Istambul.
Em sintonia com o calendário turco, as manifestações contra o reajuste da tarifa, que já aconteciam desde janeiro no Brasil, ganharam força em maio e junho e culminaram nas cerca de 10 mil pessoas que saíram às ruas em São Paulo na última terça-feira, segundo estimativa dos manifestantes, e 5 mil, segundo números da polícia.
Assim como em Istambul, os manifestantes brasileiros mais entusiasmados saem de casa usando lenços sobre a boca e máscaras do personagem principal dos quadrinhos “V de Vingança”, que conta a história de um londrino revolucionário. “Usamos a máscara porque não se trata de uma reivindicação particular: quem olhar para o meu rosto vai enxergar o de muitos”, diz um manifestante que participou da passeata de terça. “O recado é que somos todos um.”
O cientista político e professor da PUC-SP Pedro Arruda diz que a Primavera Árabe e os acontecimentos na Turquia estimulam o imaginário dos jovens, que não saíam às ruas desde que pediram a saída de Fernando Collor de Mello da Presidência da República. Ele diz, no entanto, que as manifestações por aqui “ainda não questionam a estrutura de poder”. “O que a gente vê são protestos pelo direito de andar de bicicleta, ou contra a construção da usina Belo Monte, ou pela liberação da maconha. Essas passeatas são setoriais.”
Articulados desde 2005, os integrantes do Movimento Passe Livre (MPL) citam as redes sociais e as revoluções pelo mundo como incentivo, mas dizem que há um trabalho de “conscientização” ocorrendo o ano todo pela periferia do Brasil. “Em M’Boi Mirim [na zona sul], a população já pede melhorias no terminal de ônibus e exigem uma estação de metrô”, diz o estudante Caio Martins Ferreira (19), do MPL. “As pessoas já sabiam dos protestos que estavam por vir.”
Em São Paulo, onde os manifestantes reuniram mais de 5 mil pessoas no último dia 10, o prefeito Fernando Haddad (PT) negociou com o governo federal para conseguir reajustar o valor abaixo da inflação acumulada desde 2011, quando houve a última correção. Em troca de adiar o reajuste para junho para poupar a inflação do primeiro trimestre, Haddad conseguiu do Planalto uma Medida Provisória (MP) que zerou as aliquotas do Programa de Integração Social (PIS) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) pagas por empresas de transporte coletivo urbano.
Como o PIS/Cofins são responsáveis por cerca de 3,75% do valor da passagem, ao zerar a cobrança a partir da data da sua publicação, dia 1º de junho, a MP 617 possibilitou que Haddad reajustasse em 7% as passagens, que foram de R$ 3,00 para R$ 3,20 e abriu as portas para todas as prefeituras do País reconsiderarem os valores em vigor. Em Manaus, o prefeito fez os cálculos e reajustou o valor para baixo de R$ 3,00 para R$ 2,90.
Desde 1994, quando o País adotou o Plano Real, São Paulo viu a tarifa saltar de R$ 0,50 para R$ 3,20. De acordo com o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), no entanto, a inflação do período foi de 332,22%, o que colocaria a passagem em um patamar de R$ 2,16.
O principal argumento da MPL durante suas manifestações é um dado divulgado em 2010 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) segundo o qual 37 milhões de brasileiros não podem pagar pelo transporte público regularmente. “Cada aumento significa o aumento desse contingente”, diz Ferreira.
Ações na Justiça
Com a ida de milhares de pessoas às ruas, as manifestações chamaram a atenção de autoridades, como Tribunais de Conta e Ministério Público, que oficializam e judicializam as demandas dos movimentos sociais em vários municípios.
Em Porto Alegre, os protestos começaram em fevereiro contra o reajuste das passagens de ônibus de R$ 2,85 para R$ 3,05 e nas lotações de R$ 4,25 para R$ 4,50, aumento que aconteceu em março. Em meio às manifestações, no dia 4 de abril, uma liminar da Justiça do Rio Grande do Sul determinou a suspensão do aumento até que uma ação popular que questiona a legalidade do controle das empresas de transporte público na capital gaúcha seja julgada.
Na ação popular, protocolada em 2011, os vereadores Pedro Ruas e Fernanda Melchionna, ambos do PSOL e autores do processo, questionam a ausência de licitação para as concessionárias administrarem os ônibus em Porto Alegre.
Além da liminar, questionada na Justiça pelo Sindicato das Empresas de Ônibus de Porto Alegre (Seopa), o Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul (TCE-RS) emitiu uma medida cautelar obrigando as concessionárias a mudarem os critérios utilizados no aumento da passagem, que estaria supervalorizado. Segundo Ruas, as empresas de ônibus estariam trabalhando com uma taxa de lucro de 17% a 18%, mais que o dobro do que o determinado por lei, 6,72%.
O vereador se orgulha das manifestações que ocorreram na capital gaúcha e diz que já ouviu que o que está acontecendo em todo o Brasil é o “portoalegrasso”.
Após a decisão judicial e do apoio do Ministério Público de Contas em Porto Alegre, manifestantes em outras partes do País também começaram a contar com aliados de peso.
Em São Paulo, o Ministério Público Estadual interveio e tentou promover uma negociação entre os movimentos sociais e a prefeitura, que negou reconsiderar o aumento. Na Câmara Municipal da cidade, o vereador Ricardo Young (PPS) pediu para a SPTrans enviar para a Casa a tabela de custos, a mesma utilizada para reajustar o passe. A intenção é dar "transparência" nos gastos das empresas de ônibus da capital.
Em Goiânia, os protestos já aconteciam desde maio contra a futuro aumento da passagem. Apesar das reclamações, a tarifa subiu de R$ 2,70 para R$ 3 no dia 22. Em um protesto marcado para o dia seguinte, quatro estudantes foram presos. Com o aumento do número de participantes nas passeatas de junho, uma decisão liminar do juiz Fernando de Mello Xavier, da 1° Vara da Pública Estadual de Goiânia, suspendeu o reajuste no último dia 10. A partir de amanhã (13), a tarifa volta a valer R$ 2,70.
Depois de uma manifestação em maio, os estudantes de Natal bloquearam a BR-101 e queimaram pneus em frente a um shopping no dia 6 de junho, embora tenha havido redução da tarifa. O valor saltou de R$ 2,20 para R$ 2,40, mas a isenção de impostos anunciada recentemente pelo governo federal reduziu a passagem em R$ 0,10 centavos – valor considerado insuficiente pelos estudantes, que querem a redução de outros R$ 0,10.
A mobilização também acontece no Rio de Janeiro. Também em maio, estudantes fecharam uma pista da avenida Presidente Vargas, no centro. Na última segunda-feira (10), a Polícia Militar prendeu 31 pessoas em uma manifestação que reuniu cerca de 500 pessoas.
Fórum Social Mundial
Embora tremulem bandeiras do PSOL e do PSTU entre os cartazes que pedem a redução do preço da passagem de ônibus, os líderes das manifestações que ganharam as ruas desde 2003 se referem ao movimento como “livre” e “apartidário”. A representação seria tão independente que até a liderança da tradicional União Nacional dos Estudantes (UNE) foi rejeitada em nome de uma Federação fundada em 2006.
“Se estou falando com você agora não é porque sou líder, mas porque fui designado como porta-voz pela decisão da maioria”, explica Ferreira.
A Federação saiu do papel três anos depois da primeira revolta popular que inspirou o movimento. Em 2003, estudantes de Salvador bloquearam ruas e avenidas por dez dias. O grupo só se desfez quando a UNE e a União da Juventude Socialista (UJS) tentaram assumir a liderança. Na ocasião, o aumento não foi revogado, mas a prefeitura aprovou a meia-passagem para estudantes de pós-graduação e o uso da meia-passagem aos finais de semana.
Inspirados pelos baianos, Florianópolis irrompeu com a “Revolta da Catraca” no ano seguinte. Depois de uma semana de protestos, a prefeitura revogou o aumento da passagem, mas voltou a corrigi-lo do ano seguinte, gerando mais 30 dias de manifestações que resultaram no corte da tarifa.
Animados com os dois exemplos, estudantes de outras partes do Brasil iniciaram pequenos protestos. Em pouco tempo, esses jovens já conversavam entre si e marcaram um encontro no Fórum Social Mundial de 2005, quando ficou decidida a futura criação de uma organização que os reunisse. Em julho de 2006, um encontro nacional criou a Federação Movimento Passe Livre.
“Nós articulamos as datas de algumas manifestações, mas a organização das passeatas pertence aos representantes de cada cidade”, afirma o estudante. “Nossa interlocução aumenta em outubro, quando promovemos atos em conjunto.”
De lá para cá, os protestos ajudaram a baixar o valor da tarifa em 11 cidades. Além de Florianópolis no início do movimento, Aracajú (2012), Vitória (2006), Teresina (2011) e Porto Velho (2011) aceitaram as reivindicações. Em 2013 foi a vez de acontecer o mesmo em Taboão da Serra (SP), Porto Alegre, Goiânia e Natal. O último município a anunciar a medida foi Campinas, no interior de São Paulo, que na última quarta-feira (12) tirou R$ 0,10 da passagem, que agora custa R$ 3,20.