Rio - Por volta das 23h30 do dia 1º de abril de 1964, enquanto o Congresso Nacional fervia com uma das mais tumultuadas – se não a mais – sessões de sua história, o presidente João Goulart embarcava de Brasília para Porto Alegre. Os mais otimistas aliados de Jango – não eram muitos – esperavam que, da trincheira gaúcha, o presidente liderasse a resistência ao golpe militar que, àquela altura, parecia consumado.
Liderados por Leonel Brizola, cunhado de Jango e deputado federal pelo Estado da Guanabara, os resistentes se apegavam à lealdade do recém-empossado comandante do III Exército, o general-de-divisão Ladário Pereira Teles, e à esperança de que, se já não aparentava ser de fato, João Goulart ainda era o presidente por direito. Mas enquanto o velho Avro turboélice da FAB cruzava os céus rumo ao Sul, o Congresso Nacional transformava a esperança em pó.
Jango embarcou presidente em Brasília e desembarcou ex na capital gaúcha. Três minutos antes que ele botasse os pés em Porto Alegre, às 3h58 do dia 2, o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, tomara posse como presidente da República, no terceiro andar do Palácio do Planalto, às escuras pelo corte de luz. Um andar acima, o chefe da Casa Civil, Darcy Ribeiro, e o consultor-geral Waldir Pires tentavam inutilmente manter o governo deposto de pé.
E tentaram até o fim. Horas antes, ao se despedirem de Jango, Darcy e Waldir redigiram um comunicado, assinado pelo chefe da Casa Civil, dando conta de que o presidente estava em solo pátrio e em pleno exercício do cargo. Imaginavam, naquele momento, que o Congresso respeitasse minimamente a Constituição. Mas o que estava em curso do outro lado da Praça dos Três Poderes podia ser qualquer coisa, menos uma aula de liturgia.
“No momento em que o Congresso entrou em cena, o fez para legitimar o golpe. A sessão que declarou vaga a Presidência, com a presença do presidente no país, ultrapassou todos os parâmetros da legalidade, e foi feita à revelia da democracia”, avalia Maria Aparecida de Aquino, doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e uma das maiores estudiosas da ditadura militar no Brasil.
O gesto de enviar o comunicado para ser lido na sessão do Congresso Nacional foi a última tentativa do governo Jango de manter-se sob as vias legais. Mas pela sucessão de acontecimentos ao longo do dia 1º de abril, ela se mostraria frágil mesmo aos olhos de um observador desatento. Naquela tarde, o ministro da Justiça, Abelardo Jurema, fora preso ao tentar embarcar no Santos Dumont para Brasília. Se haviam prendido o ministro da Justiça, não seria de se esperar dos golpistas boa-vontade com o comunicado.
Mas ele foi lido em plenário pelo líder do governo no Congresso, deputado Doutel de Andrade. E solenemente ignorado pelo presidente da Casa, o senador Auro de Moura Andrade. Aos gritos, cortando o microfone dos legalistas e desconsiderando questões de ordem, o senador do PDS paulista decretou: “Não podemos permitir que o Brasil fique sem governo, abandonado. Há sob a nossa responsabilidade a população do Brasil, o povo, a ordem. Assim sendo, declaro vaga a Presidência da República! E nos termos do Artigo 79 da Constituição, declaro presidente da República o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli. A sessão se encerra!”
Ironicamente, o mesmo Auro havia dado posse à Jango em 7 de setembro de 1961. Mas jamais nutriu simpatia pelo presidente. Muito pelo contrário. Foi dele um dos discursos mais inflamados contra o governo na Marcha da Família com Deus pela Liberdade, no dia 19 de março, em São Paulo. No dia 30 de março, lançou um manifesto pedindo aos militares para que “restabelecessem a ordem constitucional e defendessem a democracia”. Foi de Auro, no âmbito do Legislativo, uma das vozes mais atuantes em favor do golpe. Não teve a recompensa devida. Auro disputou a Vice-Presidência da República na chapa que elegeu presidente o general Humberto de Alencar Castelo Branco, mas foi derrotado por José Maria Alkmin, em 11 de abril de 1964.
Deposto, Jango partiu para o exílio no dia 2 de abril. A contragosto dos legalistas, desistiu de esboçar resistência para evitar “um derramamento de sangue”, sobretudo depois que os Estados Unidos declararam apoio de primeira hora aos golpistas. O Congresso, com a farsa da vacância, havia cumprido seu papel de legitimar um governo ilegítimo. Como bem avalia Maria Aparecida de Aquino: “O espírito golpista, que vinha desde a morte de Vargas, em 1954, e se transformara em conspiração com a posse de Jango, em 1962, finalmente se traduzia na derrubada de um governante democraticamente eleito. Mas o que percebo hoje é que toda aquela visão do contragolpe que os militares queriam passar caiu por terra. Não se fala mais em Revolução, nem tampouco em Movimento de 64, mas sim em golpe militar. É isso que vai ficar para a História.”
Jornal é depredado
A primeira página da ‘Última Hora’ do dia 2 de abril de 1964 é um libelo contra a deposição de um governo legítimo e pela liberdade de expressão. Um dos poucos órgãos de imprensa – há quem defenda que foi o único – a se posicionar ao lado do governo João Goulart e contra o golpe militar de 64, o jornal de Samuel Wainer pagou caro por isso.
No dia 1º de abril, quando o Congresso declarou vaga a Presidência e empossou, já madrugada do dia 2, Ranieri Mazzilli no lugar de Jango, os simpatizantes do golpe no Rio de Janeiro miraram um endereço: Rua Sotero dos Reis 62, nos arredores da Praça da Bandeira. A sede da UH era um alvo preferencial dos golpistas.
O repórter Luarlindo Ernesto da Silva, então um dos mais jovens da ‘UH’, recebeu como missão “escoltar” o colega de redação Amado Ribeiro para um lugar onde ele ficasse a salvo com a família.
Enquanto Luarlindo partia com Amado para a Serra fluminense num jeep camuflado, o prédio da ‘UH’ era depredado. Assim descreveu a invasão a revista ‘O Cruzeiro’:
“Grupos arrombaram a porta da garagem, puxando as viaturas para a rua, depredaram-nas e atearam-lhes fogo. Escritórios, idem. Rotativas, idem. Depoimento de testemunhas: a Operação ‘Última Hora’ foi obra de comandos. Em pouco mais de 15 minutos, os depredadores executaram a sua obra. (Ignoravam a existência de um cabo de alta tensão que, se atingido, causaria danos de extensão imprevisíveis, chegando mesmo a sacrificá-los.)”.
No dia anterior, a sede da ‘Última Hora’ em São Paulo fora invadida e o jornal, impedido de circular. No mesmo dia 31 de março, a sede do ‘Jornal do Brasil’, no Rio, havia sido invadida por fuzileiros navais. Mas nada comparável ao que sofreu o prédio da Rua Sotero dos Reis. Como a própria ‘UH’ relatou com coragem em editorial de primeira página, intitulado ‘A Vindita Fria”:
“Máquinas, mesas, vidros, telefones, papéis, bem como viaturas... - nada escapou à pilhagem e à destruição... Numerosos carros foram incendiados... A fúria dos terroristas foi inútil. ‘ÚLTIMA HORA’ continua.”
‘ESCUTAMOS TIROS NA NOITE’ - Luarlindo Ernesto da Silva, repórter, do DIA, estava na última hora em 1964
“Na madrugada de 31 de março de 1964, após ouvir pela Rádio da Legalidade, diretamente de Porto Alegre, notícias sobre o golpe militar e a convocação da população para resistir, Moacir Werneck de Castro, diretor responsável da ‘Última Hora’, ligou para o repórter Amado Ribeiro e o mandou fugir do Rio, com toda a família. “Leve apenas bagagem de mão”, disse Moacir. A fuga apressada, até a cidade de Três Rios, foi tensa. Eu estava acompanhando o Amado Ribeiro, repórter da ‘UH’, que levava a mulher, três filhos e a empregada para um sítio da família, buscando sair com vida da situação crítica em que o país entrava. No jeep da reportagem, além da família, estavam o motorista e eu. Íamos em direção às tropas do general Mourão Filho, que se rebelara contra o governo Jango e marchava de Minas para o Rio.
Fugíamos em direção à boca do leão! O jeep, capota de lona preta, lataria azul e logotipos do jornal em branco, chamava atenção por onde passava. Resolvemos pintar o carro, antes mesmo de pegar a rodovia. Assim, já de cor cinza, o veículo, sem os letreiros, parecia transportar uma família para o interior. E, entre choro de crianças, reclamações do motorista (“também tenho família e nem sei para onde vou”), conseguimos chegar em Serraria, cidade vizinha a Três Rios. Passamos por dezenas de comboios de soldados do Exército e de tropas da Polícia Militar mineira. Vez por outra, saudávamos os soldados com gritos de “viva a revolução” e sempre recebíamos o “viva” em troca. Pelo precário sistema de telefonia da época, tentamos sem sucesso contato com a redação. O pensamento era unânime: “Acabou a ‘Última Hora’”. Quatro dias depois, chegamos de volta à Rua Sotero do Reis. Os poucos empregados que ainda resistiam estavam sujos, cansados, com fome e medo. Nenhum deles sabia da minha missão de escoltar Amado Ribeiro e a família. Acreditavam, até então, que estávamos presos ou mortos. Dois meses depois, Amado e a família já estavam em uma casa em Correias, distrito de Petrópolis. Eu ainda servia como o pombo-correio. Semanalmente levava dinheiro e mantimentos para ele.
Embarcava na Rodoviária Novo Rio, encontrava Amado nas proximidades do Museu Imperial, em Petrópolis. Ele chegava de charrete, vestido como um agricultor. Eu sentava ao lado dele e, aos trancos, seguíamos até a casa onde estava a família, uma viagem de quase duas horas. Dormia e regressava no dia seguinte. Uma vez, em Correias, escutamos tiros na noite, num cerco de agentes do Exército à casa onde João Pinheiro Neto, colunista da ‘UH’ e ex-presidente do Incra, estava escondido. Em menos de quatro meses, Amado já estava de volta ao Rio, escondido em minha casa, usando as roupas de meu avô. Ele voltou a trabalhar e eu ainda levava dinheiro e comida para a família que ficara em Correias. Um ano depois, recebi a notícia da demissão. Sem anunciantes, o jornal não conseguia bancar a folha de pagamento. Amado morreu, duas décadas depois, de causas naturais.”