Por paulo.gomes
Corpo de Marilena foi identificado pelo pai após cinco dias de buscasDivulgação

Rio - A morte do major José Julio Toja Martinez, em 2 de abril de 1971, foi o estopim para que o general Emílio Garrastazú Medici desse a ordem para que as Forças Armadas atirassem para matar ao se deparar com guerrilheiros opositores ao regime. Era o início de um dos períodos mais sombrios e violentos da ditadura brasileira.

Martinez morreu com um tiro na axila ao abordar o táxi onde estavam Marilena Pinto e Mário Prata, dirigentes do MR-8. A versão que passou à História é de que os dois foram feridos no tiroteio e, mesmo socorridos, também morreram.

Quarenta e quatro anos depois, a Comissão da Verdade do Rio (CEV-Rio) achou documentos e testemunhas que mostram que o casal foi detido sem ferimentos e nem sequer houve tiroteio. O DIA teve acesso com exclusividade ao material que prova que o único tiro naquela noite foi o que Marilena disparou contra o major.

Aos 79 anos, o motorista de táxi Zelcio Dufrain Ortiz lembra em detalhes a corrida que fez de Cascadura a Campo Grande. “A rua estava aparentemente vazia. Ele (Mário) disse: ‘para aqui’. Quando eu parei, um pessoal cercou o carro. Um dos camaradas abriu a porta e disse assim ó: 'Vocês hoje estão pegos. Hoje vocês não fogem'”, conta Ortiz.

O motorista revela que, em seguida, Marilena atirou, e Prata abriu a porta do lado esquerdo para fugir. “A garota deu um tiro. O rapaz correu pelo meu lado e caiu. Os outros correram e seguraram ele. Eles seguraram a garota e o rapaz”, conta Ortiz.

Ele diz que os agentes pediram que ele socorresse o major que ainda estava vivo. Foi apenas no caminho que os agentes se apresentaram como militares. Segundo Ortiz, o grupo não revidou ao disparo de Marilena. “Só escutei o tiro da menina e só tinha um ferido, o major”, garante.

A CEV-Rio localizou também um registro de ocorrência da 35ª DP, assinado pelo detetive José Vianna, relatando ferimentos no major e em Prata. O militar foi para o Hospital Rocha Faria, o mais próximo. Já o guerrilheiro teria sido levado a o Hospital da Vila Militar.

No documento, o detetive informa que, horas depois, Prata morreu “ao ser removido do Hospital da Vila Militar para o Hospital, encontrando-se o mesmo no 1º Batalhão da Polícia do Exército”. Sobre Marilena, o informe diz que “a acompanhante do passageiro foi detida e permaneceu no local”.

Documentos a que O DIA teve acesso indicam que Marilena Pinto não sofreu nenhum ferimento ao ser detida pelos militaresDivulgação

Para o presidente da Comissão da Verdade do Rio, Wadih Damous, não há dúvidas de que o casal foi morto após interrogatório sob tortura. “Pelos depoimentos e documentos, fica claro que o casal foi executado depois de ser torturado”, denuncia.

Damous diz que deixa a CEV-Rio esta semana com a sensação de dever cumprido. “Esse é mais um caso que mostra que ninguém tem direito de ter saudade da ditadura”, desabafa.

'Sou frontalmente contra a tortura', diz coronel envolvido

O que houve após a prisão e até a morte de Marilena Pinto e de Mário Prata é mistério. Vizinhos da casa na Rua Niquelândia, onde tudo ocorreu, dizem que ouviram gritos de mulher ao longo da noite, mas não a viram. Ao menos dois militares envolvidos no caso estão vivos.

O então comandante do Estado-Maior da Brigada Paraquedista, hoje tenente-coronel Idyno Sardenberg Filho, contou ao DIA que foi chamado às pressas devido à ocorrência. “O major Martinez era o chefe da 2ª Seção. Eu estava em casa e fui chamado pelo general Hugo Abreu. Quando cheguei ao local, não tinha mais nada, só os agentes”, diz Sardenberg Filho.

O tenente-coronel conta que desconhece a versão de que o casal foi preso sem ferimentos e que eles não foram levados para a Vila Militar. “Fui eu que dei a notícia para o pai dela. Ele era um médico conhecido”, conta.

Clique para ver detalhadamente a nota fiscal da compra de uma urna para que o corpo da jovem, que tinha 22 anos, fosse enterrado como indigenteDivulgação

O militar disse ser contrário à violência contra presos. “Sou frontalmente contra qualquer tortura. Mesmo ela”, respondeu ao ser questionado sobre o fato de Marilena ter atirado no major. Sardenberg Filho admitiu que chegou a acompanhar o funeral de Marilena.

O subtenente Alceu Pencai é citado no informe policial da 35ª DP. De acordo com o documento, ele era um integrante da 2ª Seção da Brigada Paraquedista, o serviço reservado da unidade e estava no local. Procurado, Pencai, 82 anos, recebeu a reportagem e disse sofrer de Mal de Alzheimer.

Corpo de Marilena tinha cabelo picotado e Mário Prata foi enterrado como indigente

As mais de quatro décadas que se passaram após a morte da filha não foram suficientes para que Avelina Pinto, 92 anos, superassem o trauma da perda e da vigilância. Até hoje ela faz questão de guardar segredos sobre os últimos encontros com Marilena e teme que a “inteligência” esteja acompanhando os passos da CEV-Rio.

Dona Avelina revela, porém, que diferente do que se imagina o major Martinez pode ter atuado como infiltrado junto ao MR-8. Na última vez que se viram, Marilena falou que um companheiro novo ajudava o grupo em meios às diversas prisões que estavam ocorrendo. “Ela falou de um companheiro novo, estrangeiro e que era muito amigo... disse que era um rapaz estrangeiro, de língua espanhola”, conta.

Dois dias após o encontro, o casal foi preso e ela ficou sabendo da notícia pela TV. Mais tarde, integrantes do MR-8 contaram ao marido que Toja Martinez tinha se infiltrado no grupo e, por isso, Marilena atirou.

A saga em busca de notícias da filha foi do dia 3 até o dia 8 de abril, quando ocorreu o enterro. O Exército preparava-se para enterrá-la sem possivelmente como indigente — uma caixa havia até comprada. Mas Feliciano Pinto, pai de Marilena, conseguiu localizar o corpo no Hospital Central do Exército e garantir o enterro no jazigo da família no Caju. “Ela aparentemente estava bem coberta e eu não mexi nela em lugar nenhum porque em volta da gente tinha policiamento. Só vi que tinham cortado o cabelo todo dela, estava todo picotado e ele era comprido”, diz a mãe.

Mário Prata não teve a mesma sorte e foi enterrado como indigente no Cemitério de Ricardo de Albuquerque. Em 1996, o grupo Tortura Nunca Mais/RJ localizou fotos de seu corpo no IML e as guias que permitiram a identificação de seu enterro no dia 23/4/1971. Descobriu-se ainda que mais tarde o corpo foi levado para uma vala comum, o mesmo destino de outros 13 militantes tidos como desaparecidos.

No entanto, chama atenção o fato de que em diversos documentos do Exército é possível verificar que o corpo foi identificado pelo Instituto Félix Pacheco. Um informe do IFP no dia 16/4/1971, por exemplo, cita a identificação de Mário Prata feita pelo órgão para destruir a carteira de identidade de Henrique José dos Santos, usada por ele de modo ilegal na vida clandestina.

Médici usou caso para permitir que militares atirassem ao entrar em aparelhos

A Comissão da Verdade do Rio também localizou no Arquivo do General Médici pertencente ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio cópias de uma entrevista dada pelo ditador ao jornalista Antonio Carlos Scartezini durante o tempo em que Médici comandou o país. À época, o oficial não permitiu a publicação da entrevista na íntegra. Em 1985, o conteúdo foi editado em forma de livro sob o título "Segredos de Médici".

Na obra, ao falar da morte do major Martinez, Médici declara que após o caso do major ele teve uma conversa decisiva com o ministro do Exército, Orlando Geisel. O ministro sustentava que evitava mortes para não atrapalhar as informações. "Mas só os nossos estão morrem? Quando invadirem um aparelho, vocês têm que invadir metralhando. Nós estamos numa guerra e não podemos sacrificar os nossos", disse Médici. Segundo o jornalista Elio Gaspari no livro "Ilusões Armadas", o SNI criou tempos depois uma apostila sobre o caso para estudar as falhas na operação.

Você pode gostar