Rio - No fim de 2014, na paróquia São Pelegrino, em Caxias do Sul (RS), surgiu a dúvida: como preencher a ficha de batismo de uma recém-nascida se só havia uma lacuna para o nome da mãe e outra para o do pai? A resposta veio do padre. “No lugar da mãe, coloque o nome de uma e, ao lado, o da outra. E no espaço do pai, claro, o nome do pai. Simples”.
O reconhecimento da Igreja Católica, pelo padre, ao pai e às duas mães, casadas desde 2006, foi confirmado em fevereiro deste ano pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS). Numa decisão até então inédita no país — e por unanimidade — a Oitava Câmara Cível do estado entendeu que não havia motivo legal para o não reconhecimento daquela família, cujo núcleo central era composto por duas mães e um pai.
Desde então, segundo levantamento do DIA com o Instituto Brasileiro de Direito da Família, outros dois casos foram julgados procedentes pela Justiça. Um em Recife (PE), também com duas mães e um pai; e outro, com dois pais e uma mãe, no Rio, na semana passada.
Segundo a representante da família gaúcha, Maria Berenice Dias, presidente da Comissão de Direito Homoafetivo da OAB, o Judiciário tem avançado mais do que outros poderes na garantia de direito das famílias. “A Justiça tem trabalhado mais rapidamente para garantir direitos às várias configurações familiares existentes”.
O relator da ação no TJ-RS, desembargador José Pedro de Oliveira Eckert, afirma que não há na legislação proibição à inserção de duas mães e um pai na certidão de nascimento. “No tocante à filha recém-nascida, não se cogita qualquer prejuízo, muito pelo contrário, haja vista que essa criança terá uma ‘rede de afetos’ ainda mais diversificada a amparar seu desenvolvimento”, escreveu ele na sentença.
Os desembargadores levaram em consideração também o laudo da psiquiatra Olga Garcia Falceto, da Federal do Rio Grande do Sul, que acompanha a família desde dois anos antes da concepção da bebê, hoje com oito meses. Para ela, o planejamento foi “positivo” para o sucesso familiar. O documento atesta o envolvimento afetivo dos três.
Ao DIA, o pai, de 52 anos, afirmou que ele e uma das mães, 42, são amigos há 20 anos. Após o casamento dela, há nove anos, os três, incluindo a outra mãe, de 36, passaram a alimentar o sonho de um filho. “E ganhamos um tesouro”, disse.
Justiça analisa direito da criança
Ainda segundo o levantamento no Instituto Brasileiro de Direito da Família (IBDFAM), há outros dois casos que usam a decisão que beneficiou a família gaúcha. Um em Goiás, também envolvendo duas mães e um pai, e outra no Rio Grande do Sul, com duas mães e dois pais.
“As decisões têm sido tomadas a partir do princípio do livre convencimento do juízo. No momento em que é verificado o melhor interesse da criança, outro princípio constitucional, a decisão tem sempre de ser tomada neste sentido. Não há malefício na família multiparental. Só benefícios”, diz a advogada Silvana Moreira, da Comissão de Adoção, do IBDFAM.
Antes, alteravam-se as certidões de nascimento a partir da morte de um pai biológico.