Por tiago.frederico
São Paulo - O ruído dos coturnos avançando ritmicamente pelas pequenas ruas do Gueto de Cracóvia, na Polônia, ainda repercute nos ouvidos de Julio Gartner mesmo 72 anos após cerca de 15 mil judeus terem sido retirados do local pelas tropas nazistas e terem sido levados de maneira arbitrária a campos de concentração, inclusive a Plaszow – o primeiro dos cinco que Gartner viveria durante a Segunda Guerra Mundial (1939–1945).

"Durante muitos anos, quando eu fechava os olhos para dormir, vinham aquelas imagens na minha mente: correria, choro de crianças, o ruído dos soldados matando os moradores e invadindo os apartamentos. Às vezes ainda tenho pesadelos com isso", diz Gartner ao iG.

Julio Gartner sobreviveu após passar por cinco campos de concentração nazistas durante a Segunda Guerra MundialReprodução / Youtube

O judeu conta que levou uma vida normal junto aos pais e ao irmão por algum tempo depois de a Polônia ter sido conquistada pelas tropas de Adolf Hitler (1889—1945). Mas ao notar os perigos que as tropas representavam para o país, a família optou por ajudar o irmão do judeu a fugir para a União Soviética enquanto Gartner decidiu ficar com os pais e os 3 mil habitantes que ocupavam o distrito composto por 30 ruas e 320 construções residenciais.

Há cerca de 260 km dali, na cidade polonesa de Lodz, Henry Nekrycz, também conhecido pelo pseudônimo de Ben Abraham, viu seu mundo desmoronar quando os soldados nazistas invadiram o gueto onde morava "do dia para a noite", como ele mesmo resume, em 1944. À época, o jovem de 19 anos morava com a mãe, Ida Nekryczque, que nunca mais foi vista após após ter sido enviada ao campo de concentração de Auschwitz.
Publicidade
"Foi uma surpresa. Ninguém esperava uma ação como aquela. Eles invadiram o gueto e começaram a levar os judeus. Minha mãe foi morta em uma câmara de gás. Meu pai já havia sido morto antes, em 1942", diz.
Em Lodz, dezenas de milhares de judeus morreram por motivos como fome, doenças e em consequência de crimes violentos de 1940 a 1944. Além desses problemas, os nazistas enviaram até 80 mil prisioneiros para o campo de extermínio de Chelmno. Os que assim como Nekryczque e sua mãe ainda estavam vivos quando o gueto foi dissolvido, em 1944, foram deportados para Auschwitz.
Publicidade
Memórias

Das inúmeras lembranças dolorosas que Gartner carrega na memória, a dos pais, em especial, deixa sua voz embargada. O judeu lembra que ambos foram mortos na câmara de gás assim que chegaram a Plaszów. "Nem tive tempo de me despedir", lamenta.

"Não saberia dizer porque eles, e não eu, morreram. Não foi uma questão de idade porque muitos outros jovens também foram mortos. O que aconteceu comigo foi sorte", continua ele.

Henry Nekrycz%2C também conhecido como Ben Abraham%2C saiu de Auschwitz pesando 28 kg e com tuberculoseReprodução / Internet

Para que o mundo também não esqueça das atrocidades cometidas nessa época, a ONU estabeleceu o dia 27 de janeiro como a data em que se comemora o fim do campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau após derrota do Exército alemão pelas tropas soviéticas, em 1945. De acordo com a entidade, o regime nazista e seus colaboradores assassinaram sistematicamente cerca de 6 milhões de judeus.

Sob o comando do comandante austríaco Amon Leopold Göth (1908-1946), Gartner e outros milhares eram submetidos a mais de 12 horas de trabalhos forçados em áreas como pedreiras e o campo. Para superar, entre outras coisas, a fome e a desidratação que o levaram a pesar 34 Kg em 1945, o judeu afirma ter vivido "um dia por vez".
Publicidade
"A vida no campo era uma luta diária. Cada dia que se sobrevivia era encarado como uma vitória. Só pensava se eu conseguiria sobreviver mais um dia. Mas no fundo, me prendia a esperança de que aquele martírio acabaria e eu seria livre outra vez", lembra.
O fim do pesadelo de Gartner e dos outros judeus presos no campo de concentração aconteceu em 1945, quando os portões de Auschwitz ficaram para trás. O polonês então conseguiu ajuda de camponeses e foi internado por vários meses até se recuperar dos problemas de saúde
Publicidade
Para Henry Nekrycz, porém, a sensação de liberdade demorou um pouco mais. Dois anos a mais do que Gartner, exatamente. É que, depois de passar pelos campos de concentração de Brauschweig, Watenstadt e Ravensbruck entre 1943 e 1945, e Auschwitz, onde sua família foi dizimada, e ser libertado até antes do compatriota ele teve de ser hospitalizado às pressas. Além de pesar apenas 28 kg à época, ele estava tuberculoso e sofria de diarréia.
"Sobreviver àquela doença era um milagre. Fiquei internado por vários anos até conseguir me restabelecer. Não sei porque consegui esse triunfo duas vezes. Foi sorte ou acaso", confessa.
Publicidade
Destino final: Brasil
A vinda ao Brasil não foi a primeira ideia de Gartner quando ele deixou o hospital após meses de internação. Antes disso ele seguiu para Santa Maria del Bagno, Itália, até se restabelecer. Foi lá que ficou sabendo do paradeiro do irmão, que após ficar recluso na União Soviética, havia voltado para Cracóvia. De volta a sua terra natal, descobriu que o irmão havia comprado passagens para a América do Sul, e decidiu segui-lo até o Rio de Janeiro.
Publicidade
Foi lá que, um ano após sair do campo de concentração, descobriu que seu irmão estava vivo e que acabara de voltar para Cracóvia após um longo período na extinta União Soviética. Ao voltar para sua cidade natal, ele soube que o irmão havia decidido viver no Brasil, então ele se mudou para a América do Sul. Ao atracar no Rio de Janeiro em 1947, ele afirma não ter visto "beleza nenhuma, só pensava em como sobreviveria". Foi só ao chegar em São Paulo que as coisas finalmente pareceram ter se ajeitado.
"Cheguei a São Paulo e recebi ajuda da Congregação Israelita paulista para arrumar emprego em uma fábrica de confecções, onde fiquei por três décadas", lembra. Na capital paulista ele conheceu a mulher, a italiana Perla Matilda, com quem foi casado até o fim da vida dela, há mais de dez anos.
Publicidade
Oito anos depois da chegada de Gartner, Nekrycz chegou ao Brasil recuperado "milagrosamente", como ele mesmo afirma, de seus problemas de saúde. Ele lembra ter desembarcado no dia 21 de Janeiro de 1955. Um ano depois, em 1956, se casou com Miriam Dvora Bryk, com quem está até hoje.
"Escolhi este país como meu e nunca me arrependi. Meu pai sempre dizia, mesmo antes da guerra, que aqui vivia um povo bondoso e que havia como crescer", diz ele, que é aposentado, mas atuou a vida inteira na indústria.
Publicidade
Gartner compartilha da imagem de Nekrycz sobre o Brasil. "Não há lugar melhor para se viver do que o Brasil. Os políticos prejudicam bastante o País, é verdade, mas aqui encontrei um lar que respeita a minha religião e minhas diferenças culturais", pondera.

Publicidade
Reportagem de Amanda Campos, do iG São Paulo.