Por bferreira

Rio - Ela quer comprar roupas. “E quero que alguém me lembre como cozinhar”. Aos 44 anos, Dalva foi privada de atividades simples, por ter passado as últimas duas décadas confinada em manicômios. Mas, em breve, o sonho de um cotidiano normal será realidade. Internada no Hospital Paracambi, na Baixada Fluminense, ela integra o grupo de pacientes com transtornos mentais que, após anos de internação, receberão alta. A ideia é fechar a unidade até julho.

A intervenção da prefeitura no Hospital Paracambi aconteceu depois de uma Ação Civil PúblicaDaniel Castelo Branco / Agência O Dia

A medida faz parte da intervenção pela qual a unidade psiquiátrica passa desde 14 de janeiro. O objetivo do fechamento é proporcionar melhores condições de vida e tratamento mais adequado aos pacientes — a maioria com diagnósticos de esquizofrenia ou psicose.

No início do ano, havia 153 internos e, hoje, são 63. Cerca de 80% dos que já foram liberados trocaram as dependências frias e cinzentas pelo ‘aconchego do lar’. Os demais foram encaminhados a Residências Terapêuticas (RT), casas destinadas a portadores de transtornos mentais que não conseguem voltar para a família após sair do manicômio. A ideia é finalizar as transferências até julho.

“O hospício é um lugar ‘imelhorável’. Quando o paciente sai, há mais possibilidades, mais condição de ele se expressar. Lá fora tudo é possível”, aponta o psicólogo Luiz Carlos Felício, responsável pela intervenção.

A RT será o destino de Dalva e da amiga inseparável, Vera. As duas se conheceram quando estavam internadas na Casa de Saúde Doutor Eiras, manicômio fechado em 2012 em Paracambi.

A vida repleta de possibilidade, porém, tem desafios. O psicólogo afirma que, ao receber alta, a pessoa ‘carrega o manicômio’ consigo, e mantém hábitos antigos. Apesar da grande porcentagem de pacientes que voltaram para casa, há resistência das famílias em receber alguns. “Há casos de parentes que trazem pizza para o manicômio, mas não estão abertos a comer essa pizza em casa com o paciente”, conta Felício. A intervenção será o último capítulo de tratamento inadequado. “Não pretendemos transferir ninguém para outro hospício”.

Multidão sob maus tratos

O trabalho no Hospital Paracambi segue os princípios da Luta Antimanicomial, celebrada dia 18 de maio. O movimento começou no fim da década de 80, após série de denúncias de maus tratos aos pacientes. O principal símbolo da luta em Paracambi é a Casa de Saúde Doutor Eiras, manicômio fechado, definitivamente, em março de 2012, após mais de 70 anos de funcionamento. A unidade foi a maior da América Latina e teve 3,5 mil leitos.

Ana Paula Guljor, psiquiatra e pesquisadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Fiocruz, relata que o fechamento foi um marco, principalmente porque a maioria dos pacientes não foi transferida para outros manicômios — houve uma inserção deles na sociedade.

Ela conta ainda que o Doutor Eiras era um hospital de longa permanência e com pouca rotatividade dos pacientes. “Esse processo destitui o paciente do seu próprio eu, da capacidade de escolha e do seu potencial criativo. Ele passa a ser mais um na massa”.

Também foi criado um Polo de Saúde Mental em Paracambi, para oferecer o tratamento adequado por meio de unidades como os Centros de Atenção Psicossocial, que oferecem atendimento psiquiátrico e oficinas.

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