Rio - O ser humano tem uma capacidade de trair impressionante. E não estou falando só de trair o outro com outra ou com outro. Ou seja, não falo só das traições referentes ao amor ou ao desamor. Falo mesmo das traições cotidianas. De revelar confidências, de não cumprir acordos, contratos ou a palavra dada. É mais do que simplesmente falar para um o que o outro lhe disse. É simplesmente e sempre pensar em si mesmo em primeiro, segundo, terceiro lugar, sem nunca se lembrar que o outro também existe.
Não estou falando só das traições tipo a do Cesar traindo a Pilar na novela das nove. A traição do amado ou da amada é terrível. Ninguém gosta de ser traído. As cicatrizes doem, a dor se arrasta, a vida passa e só o traidor não vê ou não percebe a dor que causou. Mas a dor do amor, ainda que doa muito, passa. Em algum momento, o traído se recupera, ou prefere esquecer para sobreviver.
Pior é a traição para com uma população inteira, uma cidade inteira que se sente traída, por exemplo, quando, dois anos depois de um acidente que matou várias pessoas em Santa Teresa, tudo continua igual. Ninguém recuperou o bonde, ou os bondes. Muito foi prometido. Nada foi feito. Não é uma forma de traição ser eleito e não cumprir as várias promessas de campanha? Isto vale também pro Morro do Bumba e para as cidades da serra de Petrópolis. Esquecer compromissos é trair. Não estão vendo o que acaba de acontecer em São Paulo? Engenheiros e arquitetos avisaram que o prédio que estava sendo reformado não tinha estrutura para suportar a obra que estava sendo feita. A prefeitura até multou a empresa responsável. Mas não interditou a obra. Não impediu a tragédia.
A burocracia impede, em muitos casos, soluções imediatas, rápidas e eficientes. Mas será que atrás de um burocrata não existe, nem nunca vai existir, compromisso com o outro? Será que o tempo que uma decisão leva para ser tomada, ainda que ameace pessoas e vidas, não pode mesmo ser reduzido? Será que as leis e as regras não podem mesmo ter um regime de urgência para casos graves e urgentes? Não consigo deixar de achar que falta atitude e comprometimento.
Será que todo mundo tem mesmo que esperar a desgraça chegar sem se mexer, se escorando nos advogados que explicam o inexplicável ou nos papéis que não andam, em nome das leis e dos caminhos burocráticos? Algumas coisas na vida não podem esperar. A fome é uma delas, e a gente já sabe. A tragédia anunciada também. Não se importar com elas não é uma forma de traição? Não é uma maneira de não ver o outro? De trair o outro? E também de trair a si mesmo?
Leda Nagle é jornalista, escritora e apresenta na TV o ‘Sem Censura’