Rio - O simples ato de viver nos causa uma série de problemas éticos. Ao usar o carro, geramos poluição, contribuímos para o aquecimento global. Uma ida ao supermercado representa um ataque ao planeta: compramos detergentes que limparão casas e sujarão os rios, alimentos produzidos à custa de muito agrotóxico, frangos cujo ciclo de vida foi acelerado para apressar suas mortes, carnes de bovinos criados em áreas roubadas de florestas.
Nos achamos no direito de criar animais para matá-los. O Arthur Dapieve escreveu que deixou de comer bichos “fofos”. Como ele, rejeito traçar coelhos, mas não saberia, depois de uma ida a uma churrascaria, enfrentar o olhar acusador da dona Leitoa ou da dona Vaca. Como justificar a uma triste mãe que eu comera a carne de seu filho por não considerá-lo suficientemente “fofo”?
O teólogo e ecologista Leonardo Boff diz que a Bíblia tem sua responsabilidade nessa nossa vocação dominadora. Isto, por determinar que deveríamos tomar posse da Terra e submeter peixes, pássaros e todos os animais que rastejam. Para ele, esta ordem autorizou uma série de crimes contra o planeta. Boff não quer brigar com Deus, apenas prega que, nesta altura do campeonato, seria melhor relativizar esses preceitos bíblicos e utilizar os recursos disponíveis de maneira mais racional e respeitosa.
Tudo isso é para falar do resgate dos beagles em São Paulo. Mesmo quem não tem muita simpatia por animais domésticos (é o meu caso) não deixa de se comover ao imaginar aqueles simpáticos cãezinhos sendo supostamente torturados por sucessores de Cruella de Vil, a vilã de ‘101 Dálmatas’. Mas, para a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, o Instituto Royal trabalha de maneira correta, suas pesquisas ajudam na criação de medicamentos para seres humanos e de rações para cães.
Organizações de defesa de animais têm tido um papel importante na denúncia de abusos em laboratórios. Graças à luta desses grupos, muitas práticas foram banidas, mas cientistas dizem que hoje é impossível abrir mão de experiências com camundongos, macacos e beagles.
Voltamos então ao problema ético. A rejeição a esses testes geraria situações delicadas, como deixar de ter novas vacinas para nossos filhos ou ficar sem antibióticos capazes de salvar suas vidas. No limite, diz a ciência, temos que optar pelo beagle ou por nossos filhos.
Fernando Molica é jornalista e escritor | E-mail: fernando.molica@odia.com.br