Por bferreira

Rio - Desde os fins da década de 70, ainda no contexto da anistia e da redemocratização do Brasil, um movimento de transformação da cultura e desconstrução do estigma da loucura surgiu no cenário nacional. A substituição do modelo asilar e excludente, centrado no hospital psiquiátrico, se constituiu em um processo denominado Reforma Psiquiátrica. Este, constituindo-se pelo movimento social (da luta antimanicomial), conquistou legislação específica para a saúde mental e trouxe para as rodas de conversa o lugar social da loucura. Através dos novos serviços, como os Centros de Atenção Psicossociais/Caps (locais de tratamento na comunidade com atenção diária e intensiva, com equipe multiprofissional), vem confirmando a possibilidade de cuidado do portador de transtorno mental na cidade, no território.

A desconstrução do imaginário social de periculosidade e incapacidade do louco se apresenta através da inclusão deste no dia a dia da cidade. O convívio com o diferente é incentivado por projetos culturais, como blocos de Carnaval (Tá Pirando, Pirado, Pirou e Maluco Sonhador); do cinema, como o Cine HPJ, do Hospital Psiquiátrico de Jurujuba; a banda Harmonia Enlouquece, do CPRJ, entre outras várias iniciativas onde a comunidade e a loucura convivem de braços dados.

No entanto, a Reforma Psiquiátrica apenas se consolidará com a efetiva transformação da imagem que a sociedade em seu íntimo cultiva sobre a loucura. Nas novelas, com poucas exceções, o vilão ainda tem como desfecho dramático a morte ou a internação no hospício. As políticas de recolhimento e exclusão vivenciadas pelos dependentes químicos são a face mais recente desta história, agora respaldada na judicialização e seu viés conservador das internações compulsórias: solução máxima encontrada por juízes principalmente ao tratar-se da infância e adolescência. Destaque-se a diferença entre compulsória e involuntária. A última é um acolhimento, por equipe especializada em saúde mental, também possível em Caps 24h,e por vezes, pontualmente, necessária no tratamento. A ampliação do foco para as condições de vulnerabilidade social e a demanda por políticas intersetoriais têm se resumido cada vez mais intensamente à solução mágica da ‘internação’.

É fato que ao longo dos últimos 30 anos muito se tem avançado. Nossa sociedade, ao discutir direitos humanos, problematiza a homofobia, o racismo, a tortura nos presídios, mas o vilão que termina no hospício ainda contínua campeão de audiência nas salas das famílias brasileiras.

Ana Paula Guljor é mestre e doutora em Saúde Pública pela Ensp/Fiocruz e diretora do Hospital Psiquiátrico de Jurujuba

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