Rio - O taxista me reconhece e comemora, às duas da manhã, cantando um samba inédito da sua autoria. Essa espontaneidade me traz de volta a esperança de que a cidade ainda pode ser maravilhosa, um cais de retorno, mar de demanda.
Os perigos da minha infância moravam no elevador, a porta pantográfica. Os fantasmas empurravam a grade, e eu me sentia decapitado antes do oitavo andar. Nem mesmo o espetáculo do mar revolto nas ressacas da Atlântica em mão dupla provocava a taquicardia da guilhotina sanfonada. Também chorei por perder chapinha premiada e figurinha carimbada.
Hoje, meu sobrinho Leo tem o tênis arrancado na esquina de casa. Assustado, o carioca anda apressado. Sumiram as cadeiras na calçada, o namoro juvenil no portão encostado, contar estrelas, pera, uva ou maçã. Estamos trancados de vergonha. Admitir a melancolia dói.
Frequente, encontro antigas fotos dessa saudosa Guanabara. São recortes de uma cidade acesa de tesão. Os carros circulavam em câmera lenta, enquanto zuniam os bares cheios de sorrisos e chopes da serpentina de gelo. A bicicleta tinha garupa e tombava solta no poste do xixi. Ladrão, só de galinhas.
Sei, exagero. Ficciono um passado sem o crime da mala, sem os verdes cassetetes, e o camburão do Fumanchu, mas estamos no limite da tolerância zero. A lei de impedir o espontâneo. Um verdadeiro estado de sítio com toque de recolher.
O taxista mostra outra obra, inspirada em Zeca Pagodinho. A rua deserta divide a minha atenção. Sabe lá, um síndico reclama dos agudos esganiçados do autor entusiasmado ou, vulneráveis, uma bala perdida, que hoje ricocheteia também na Zona Sul, sei lá, estrague a noite.
—Vai pro refrão! Peço, ansioso, ao bandeira 2 inspirado.
Pensar que já amanheci ao lado da madrinha Beth Carvalho no meio-fio da Mem de Sá, carro aberto, ouvindo os sambas do seu repertório.
O porteiro libera a entrada antes que um larápio atrás da árvore fique de no olho no meu violão. Chegar ileso é quase um milagre, a beatificação da sobrevivência.
Eu não mereço estar cabisbaixo no Rio de Janeiro.
E-mail: moaluz@ig.com.br