Por adriano.araujo

Rio - Numa rua de Botafogo, quase esquina com São Clemente, a marquise protege frequentadores de bares e serve de teto para alguns homens e mulheres. São sempre os mesmos, estão sempre por lá, já devem ter adquirido aquele pedaço de calçada por usucapião. Fiquei meio impactado quando os vi pela primeira vez — a contradição entre a animação dos bares lotados e o silêncio recolhido daquelas pessoas é óbvia demais, torna dispensável qualquer discurso sobre as desigualdades brasileiras.

A visão inicial é genérica, simplista, classifica a todos de moradores de rua. Aos poucos, ao longo de alguns meses, é possível perceber pequenos detalhes que individualizam os integrantes daquele grupo. São como habitantes de pequenos apartamentos, como os revelados no documentário ‘Edifício Master’, de Eduardo Coutinho. Cada um com seu pequeno quadrado, espaços restritos que abrigam aquelas vidas. O olhar apressado, viciado no modelo tradicional de casa, vê ali apenas degradação: roupas velhas, pedaços de papelão, restos de caixotes. Mas, para quem vive por lá, esses objetos fazem parte do cotidiano, integram e personalizam suas vidas. São como nossos sofás, mesas, cadeiras, estantes, livros, TVs — cada qual com seu cada qual.

Uma das mulheres, negra, tem porte altivo, veste-se com roupas que parecem feitas sob medida para seu corpo magro. Está sempre com uma peruca de fios lisos e castanhos. Uma de suas vizinhas demonstra recato — costuma cercar sua casa com paredes de papelão que têm cerca de um metro de altura. Ontem cedo, ela, de pé, vigiava roupas íntimas que colocara para secar sobre a calçada. Como tantas e tantas donas de casa, ela aproveitava o fim de semana para colocar em dia algumas tarefas domésticas.

Discretos, cuidadosos, zelosos no uso de seus espaços, aqueles homens e mulheres dão uma espécie de lição nos que sonham vê-los longe dali, despachados para bem longe, para algum galpão recheado por centenas de camas de ferro dispostas lado a lado. A ideia do abrigo demonstra um desejo de enquadrar aquelas pessoas, de torná-las iguais, sem nome, sem passado, sem futuro. Ali, numa calçada de Botafogo, assim como em tantas outras da cidade, elas resistem. A presença delas, aos nossos olhos, deitadas ao lado dos nossos passos, reforça que ainda temos um longo caminho a percorrer em busca de um país mais justo. Ressalta também que é preciso saber respeitar os detalhes que marcam as vidas alheias, o cantinho que cada um chama de lar.

E-mail: fernando.molica@odia.com.br

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