Por bferreira
Rio - Não era fácil ir a Cuba. Em 1985, como Brasília não havia reatado relações diplomáticas com Havana, a viagem era quase clandestina. Tínhamos que trocar de avião em Lima e, no destino final, nosso passaporte não podia ser carimbado. Mas era curioso. Num teatro chamado Karl Marx, fui apresentado a Gabriel García Márquez e a Fidel Castro.
‘Fidel e a religião’, livro de Frei Betto, fazia sucesso aqui e lá. Então recém-casado com uma jornalista, a acompanhei numa entrevista com o arcebispo de Havana. Ele nos disse que a Teologia da Libertação, que via no Evangelho um manual de pregação revolucionária, não fazia muito sentido em Cuba. Com problemas básicos resolvidos, os jovens estavam em outra etapa, queriam ter acesso aos bens de consumo — alguns nos ofereciam dinheiro para que lhes comprássemos calças jeans em lojas exclusivas para turistas; crianças não nos pediam dinheiro, mas chicletes.
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O socialismo era temperado pela população, que parecia não levar muito a sério a pregação oficial. As pessoas se viravam, charutos desviados de fábricas eram vendidos nas ruas; no melhor estilo carioca, um taxista perguntou o nosso destino antes de aceitar a corrida. Cuba gerava sentimentos contraditórios — alegria por ver um país latino-americano sem miséria, cheio de negros médicos, engenheiros, comandantes de aviões; tristeza pela constatação da ditadura.
Voltei a Cuba anos depois, já não havia a União Soviética, que subsidiava o aliado ao vender petróleo barato e pagar caro pelo açúcar. Na ida, tremi ao notar que a comissária do velho Ilyushin da Cubana de Aviación, passados 20 minutos de voo, ainda usava o colete salva-vidas. Vi um país empobrecido, muita gente me pedia dinheiro, a prostituição, antes reprimida, tornara-se comum. Mas o show no Tropicana era ótimo, os sujeitos permaneciam bem-humorados. Em Varadero, aos gritos e risadas, um instrutor chegou a indicar a um velejador o rumo que deveria seguir para alcançar Miami.
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Na volta, a aeromoça tentou me expulsar da modesta primeira classe do avião — eu tinha ido lá conversar com amigos. Meio bêbado de tanto rum, protestei, chamei-a de “compañera”, disse que era marxista-leninista e não admitia divisão de classes em empresa aérea de país socialista. Assustada, ela pareceu acreditar na brincadeira, e se mandou. Ao sobrevoarmos o Caribe, notamos que grossas colunas de fumaça saíam de uma ilha: “Olha a Jamaica!”, gritou um vetusto jornalista da delegação. Depois de 53 anos de um injustificável embargo, norte-americanos vão ver como é divertido ir a Cuba.
E-mail: fernando.molica@odia.com.br
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