Por felipe.martins, felipe.martins
Rio - Apontei o microfone da Globo rumo ao feio rosto da travesti: “Oi, belíssima, qual o seu nome?”. “Vanessa, mas pode me chamar de Piu!”. “O que é bafão no mundo do samba?” “É perder o ônibus que tá voltando pra casa com o pessoal depois do ensaio, porque este ônibus é o fervo total. É muita palhaçada. Mas se você quiser bafão mesmo, vem me filmar na frente da bateria.”
Quanta alegria ingênua, quanta tristeza nos olhos que ela não conseguia disfarçar com suas penas baratas e surradas, seus panos quase trapos nos quais ela enrolava o magro corpo. Totalmente desengonçada, muito alta, me intrigou de imediato, fui além de sua aparência louca, achei-a triste, muito triste, com aquele buraco oceânico do abandono freudiano. Será que ela sabia ou intuía que iria viver pouco, que iria morrer jovem? Foi a primeira entrevista que fiz para aquela edição de Nilópolis, pois ela não precisava nem falar, existir já era uma sensação, ali parada, na grade no meio da quadra da Beija Flor, só não imaginei que antes de ir ao ar, o ‘bafon’ seria seu último documento, a última declaração dela registrada. Agora seu corpo perfurado e marcado fica apenas de testemunha de sua fulgurante existência. Foi a equilibrista na corda bamba com sua bela sombrinha de babadinho e aquele frio na barriga de quem sempre pode cair.
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Caiu, mas na minha fantasia está de pé nas nuvens, foi-se, e eu aqui a me perguntar porque uns e não outros, como é esta seleção natural que parece tão artificial. Trágico final para uma esfinge cuja compreensão, dificílima, passava por questões como homofobia, guerra entre quadrilhas e uma gliterizada disposição para rebolar sempre. Trágico fim.
Triunfo: no fim de semana, estive em dois júris no Parque de Madureira com a Érica, nova Globeleza. Na sexta à noite, a Cufa do Celso Ataíde fundou a Liga de Blocos Afros e trouxe à vida algumas moribundas agremiações fluminenses que são pérolas culturais em seus abandonados redutos. O outro evento foi domingo à tarde, uma feijoada quando os blocos da Zona Oeste e Norte fundaram sua liga de blocos, para jogar luz em desfiles para além da Zona e Sul e Centro.
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Mas quero falar desta menina-moça de comunidade da periferia de São Paulo: que espetáculo de garota, bonitona, mas isso fica atrás de um sorrisão simpático e de um jeito de ser igual a todas as pessoas fora do palco, impressionante. Como se tudo não bastasse, a mulata fala que é uma maravilha: a voz revela o humano por trás da personagem, e a empatia é imediata. Do limão de sua realidade, ela aprontou a mais deliciosa das limonadas: profissional de dança, veio para ficar, articulada e verdadeiramente estrela, dotada daquela simplicidade cativante e de uma bunda esplendorosa, que prova que ela é a tal.