Rio - Lia diariamente as crônicas de Otto Lara Resende na ‘Folha’ até o dia no qual faleceu. A morte dele me propiciou a sensação de ausência, tal como se fôssemos velhos conhecidos. Algumas de suas crônicas nunca me saíram da cabeça. Numa delas, ele descrevia um passeio com o pai por Minas quando, de trem, passaram por uma siderúrgica. Criança, ele se deu conta de onde vinham os canivetes. No seu imaginário, aço se produzia para esta finalidade. Minha identificação com ele era regional.
Todos são necessários, mas ninguém é insubstituível; o espaço não ficou em branco, e Carlos Heitor Cony o assumiu. Estranhei o estilo. Mas Cony começou a escrever coisas que também me diziam respeito, dentre as quais a transgressão ao que parece imutável. Numa falou sobre leis naturais vencidas pela humanidade e citou a gravidade parcialmente revogada com o advento do avião. Não foi com reverência a ela que o homem chegou à Lua; foi com sua transgressão.
Em outro tempo ouvi o teólogo e filósofo Leonardo Boff falando sobre transcendência. A concepção exposta foi a mesma do Cony, a de que o ser humano tem a capacidade de ir além dos limites e fundar novos marcos de existência. No doutorado emendei conversa com meu orientador, professor Eurico de Lima Figueiredo, de quem ouvi que o ser humano é tão suscetível de exceder limites que é capaz da arte. Não fosse esta capacidade de transgredir, estaríamos até hoje vivendo nas cavernas, sem a criação da escrita, dos números e da representação da natureza, de sentimentos ou do imaginário expresso em obras de arte.
No campo das expressões eruditas, a ópera sempre foi considerada manifestação artística complexa. Orquestra, canto e representação teatral são apenas algumas das manifestações a que se pode assistir simultaneamente. Mas nada — no mundo — é igual ao Carnaval carioca. Trata-se da maior, mais completa e complexa manifestação cultural da Terra. A que reúne o maior número de pessoas interagindo ao mesmo tempo e sincronizadamente. Isto foi o que me disse o professor Theotônio dos Santos, um dos autores da Teoria da Dependência. Em número de participantes, somente os desfiles militares atingem patamar semelhante. Mas, nestes, todos os passos são iguais e se faz a mesma coisa desde que se começou a ensinar ordem unida aos soldados. No Carnaval carioca, não! Cada ano, cada escola, cada ala faz a diferença e sincronizadamente se produz o maior espetáculo da Terra. Darcy Ribeiro e Brizola tinham razão quando fizeram o Sambódromo, um monumento à cultura popular.
João Batista Damasceno é doutor em Ciência Política pela UFF e juiz de Direito