Por bferreira

Rio - Os 350 anos de escravidão e a recepção de mais de 5 milhões de africanos fazem do Brasil o maior país escravista dos tempos modernos. Diante do indiscutível peso demográfico dos descendentes de escravos, o processo de construção da ‘comunidade imaginada’ brasileira no contexto pós-abolição teve que passar pela elaboração de uma memória coletiva da escravidão, da qual o Estado e intelectuais tiveram forte participação.

Por muito tempo predominou a ideia de que o escravismo brasileiro se singularizou pela “benignidade”, falta de “preconceito de cor” e “humanismo católico” dos senhores. Tal imagem foi extremamente funcional para o projeto de nação que despontou no início do século 20, pois permitia reconciliá-la com seu passado e apresentá-la como unidade indivisa e harmônica. No entanto, desde meados de 2000 o passado e a memória da escravidão entraram em disputa sem precedentes, passando a ser ativados para legitimar demandas de reparação e redistribuição dirigidas ao Estado e à sociedade.

As discussões a respeito de se escravidão no Brasil foi “branda” ou “violenta”, “amistosa” ou “cruel”, passaram a frequentar os grandes veículos de imprensa, convenções internacionais e debates travados no interior do Estado, judiciário, universidades, partidos políticos, organizações da sociedade civil e movimentos sociais. Sob o pretexto — justo, mas equivocado — de combater leituras maniqueístas, historiadores passaram a reclamar autonomia para o seu campo disciplinar diante das investidas dos movimentos sociais e, em alguns casos, a responsabilizar também os negros pela opressão escravista, embaralhando os papéis de vítima e algoz.

Nesse sentido, vale acompanhar os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra, criada por iniciativa da OAB e cujas atividades serão realizadas até 2016. Ela tornará mais visíveis projetos políticos ligados a diferentes leituras do passado e a multiplicação dos lugares de enunciação e formas de engajamento intelectual. A comissão proporciona a oportunidade de rediscutir a memória pública da escravidão no Brasil a partir do engajamento da sociedade civil — feito inédito na história brasileira.

A história é forma pública de conhecimento, divulgada pelas instituições públicas e pelos meios de comunicação, e disputada e operada no interior de diversos campos, como a política, a academia, os movimentos sociais e a sociedade civil. A construção de projeto de futuro comum repousa inevitavelmente sobre determinados usos, seleções e enquadramentos políticos do passado. Um passado que, no caso brasileiro, traz a marca indelével do racismo, do tráfico humano, da violência e do trabalho compulsório.

Verônica Toste Daflon é socióloga, prof. na Unirio e pesq. no Iesp/Uerj

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