Por bferreira

Rio - O carioca é um milagre. Não me refiro aos numerosos clientes satisfeitos de um futebol-produto, de um bairro-playground, de uma cidade-empresa; tipos que andam grassando por aí. Falo do carioca que bateu tambor em fundo de quintal, jogou capoeira, fez a sua fé no bicho, botou o bloco na rua, a cadeira na calçada, o despacho na esquina, a oferenda na mata, a bola na rede e o mel na cachoeira.

Penso no carioca que deu o nó no rabo da caninana, inventou a cidade que lhe foi covardemente negada e criou uma maneira de estar no mundo que atropela convenções, confunde, seduz, agride e comove. Nos meandros do legal e do ilegal, ao longo da história, o povo do Rio, juramentado nos secretos da pedrinha miudinha de Aruanda, subverteu a escuridão dos tumbeiros, a caça aos índios tamoios, a ferida aberta pelas chibatas, os códigos criminais, os devaneios da cidade cosmopolita, as covas rasas e os camburões.

Qualquer debate que ignore isso é provisório, equivocado e, como sempre, excludente. A leitura meramente institucional ou judicializante de um processo histórico que, como qualquer outro, é complexo, empobrece a discussão, estimula o erro e aponta soluções imediatistas que não se sustentam em um prazo mais longo. Por isso renovo o compromisso e firmo, como quem risca a pemba na guma da curimba, que continuarei, às margens do rio Maracanã, a bradar louvores pela civilização peculiar de Pixinguinha, Paulo da Portela, Cunhambebe, Cartola, Noel Rosa, Bide, Ismael, o Caboclo das Sete Encruzilhadas, Tia Ciata, Meia Noite, Madame Satã, Lima Barreto, Machado de Assis e Paula Brito.

Seguirei interessado nas aventuras de Manduca da Praia, Silas de Oliveira, Anescar, Dona Fia, Fio Maravilha, Leônidas da Silva, Di Cavalcanti, os judeus da Praça 11, a pombagira cigana, a escrava Anastácia, o vendedor de mate, o apontador do bicho, a professora, o aluno, o seresteiro, o chorão, o sambista, a mãe do samba, a filha do funk e a dançarina que baila no silêncio sincopado entre uma bala e outra.

É nesses cariocas que penso em tempos de remodelação urbana, choques de ordem, food trucks e coisas do gênero. Os lugares são, afinal, espaços de construção de memórias, culturas, formas peculiares de se experimentar a vida e abordar o mundo. Território é aldeia e cidade é disputa. Sem mais, consagro aos meus o compromisso de continuar falando o pouco que sei daqueles que bateram tambor na fresta para subverter pela festa. Viva a turma que está na área para incomodar a moda!

E-mail: luizantoniosimas67@gmail.com

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