Rio - John Donne escreveu que ninguém é uma ilha e que a morte de qualquer pessoa nos diminui, pois fazemos parte do gênero humano. Um humanista não se contenta com a morte de seu semelhante e chora diante dela, por todos nós, porque reveladora da finitude que nos é comum. Mas, alguns quando morrem nos testam a humanidade. Mário Benedetti escreveu o poema ‘À morte de um canalha’, dizendo que “os canalhas vivem muito, mas algum dia morrem”. A desumanidade dos bárbaros pode nos contagiar e nos desumanizar.
Meu amigo Mozart Noronha, reverendo luterano exilado durante o governo Geisel, oficiou os serviços religiosos no funeral do ditador. Questionado por estudantes de Direito, disse que a morte extinguira a punibilidade; que a recusa do serviço religioso implicaria pena à família, que não pode passar da pessoa do condenado; que seu algoz voltara a ser membro de sua comunidade religiosa e que tinha direito ao serviço. Diante da insatisfação dos estudantes, exclamou: “Eu sepultei o Geisel. Eu não o ressuscitei.”
O coronel Brilhante Ustra foi chefe do DOI-Codi do 2º Exército no governo Médici. Além da tortura à atriz Beth Mendes, o Grupo Tortura Nunca Mais documentou centenas de casos de tortura e dezenas de mortes sob sua gestão. Notas e manifestações dos que lutam por justiça praguejaram sua morte antes que pudesse ser responsabilizado pelos crimes que cometeu a serviço do Estado, sequestrado pelo capital com o auxílio das Forças Armadas, de outras instituições estatais e de homens que não honraram as funções dos cargos que ocupavam.
Fiquei entre os dois comportamentos: manter-me humano diante dessa morte, pois a de qualquer homem diminui a humanidade, ainda que seja um facínora, ou desumanizar-me e lamentar ter morrido de morte natural sem responsabilização ou justiçamento pelas atrocidades que praticou. Sou fraco. Fiz coro às notas e manifestações contra o morto e lembrei do poema de Mario Benedetti. Assustei-me comigo mesmo ante a felicidade pelo contentamento de ter no mundo menos um torturador entre nós. Por algum tempo perdi a humanidade que espero sempre me caracterize como civilizado, tal como Mozart Noronha e Siro Darlan, cujas generosidades lhes dificultariam escorregar para a desumanização.
?João Batista Damasceno é doutor em Ciência Política e juiz de Direito