Por bianca.lobianco
Rio - Chego ao início do ano e constato que, entre mortos e feridos, cascatas de pedras a atulhar esperanças, frente à enxurrada de mazelas, estou vivo. Estar vivo é milagre constante. Por muito pouco a vida se esvai: um coágulo de sangue no cérebro, um tropeção, o vírus, o tiro, o acidente de trânsito, um acaso.
A cada manhã se repete o renascer. Agora sei por que o bebê faz manha à hora em que o sono começa a vencer-lhe a resistência. Teme a morte, a segregação do aconchego, o retorno às cavernas uterinas. O sono apaga-lhe os sentidos, a consciência, o (con)tato com mãos e olhares afetuosos.
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Crescer é dormir sem medo. Confiante de que se vai acordar no dia seguinte. Agora, sei que acordei em 2016. Espero que não apenas do sono pós-Réveillon. Também dessa letargia que me acossa, desse propósito de inconsistência que me assalta, dessa lúgubre angústia de viajeiro que, além de perder o mapa, perdeu-se no mapa.
Adeus, 2015. No ano que findou, por vezes me julguei um idiota dostoievskiano, entre crime e castigo, porém como se tudo dependesse da destreza semântica do jogador.
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Contudo, não sucumbi. Feito bambu, envergo mas não quebro. De minhas ranhuras brota delicado som de flauta. Sei que a vida é uma aposta. Todas as minhas fichas estão colocadas no tabuleiro dos deserdados. Jogo ao lado dos perdedores. É apenas isto que me interessa: ao faminto, o pão e a paz. De que valem todos os poderes do mundo se não enchem um prato de comida? Não sou empalhador de pássaros. Quero-os vivos, livres, o voo arisco enrugando ventos. Quero-os saltitantes entre as flores que cultivo em meu canteiro íntimo. Quero-os gorjeando melodias todas as manhãs.
Bem sei que teremos ano novo de rinhas eleitorais, disputas políticas, juras de campanhas. Prefiro assim à ordem canhestra das ditaduras e ao genocídio da guerra que supõe impor democracia por força das armas. Só não sei quando o meu povo se erguerá da desolação, os jovens deixarão de ser meros espectadores, de novo ruas e praças serão ocupadas, desalojando a política de seus palácios e de seus redutos parlamentares e tornando-a, de fato, esse exercício coletivo de imprimir futuro ao futuro, por mais que a expressão pareça apenas uma redundância.
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Chega de golpes! Quero a vida despontando na cidadania inelutável. Tenhamos todos acesso à vida, distribuída à farta como pão quente pela manhã, sem jamais temer as intermitências da morte.
Frei Betto é autor do romance policial ‘Hotel Brasil’ (Rocco)