Por bferreira
Rio - Carnaval significa ‘festa da carne’ e era, em seus primórdios, uma festa religiosa. Às vésperas da Quaresma, diante da perspectiva de passar 40 dias em abstinência de carne, os cristãos fartavam-se de assados e frituras entre o domingo e a ‘Terça-Feira Gorda’. Na quarta, revestiam-se de cinzas, evocando que do pó viemos, para o pó retornaremos, e ingressavam no período em que a Igreja celebra a paixão, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo.
A Quarta-Feira de Cinzas leva-nos a refletir sobre esta experiência inelutável: a morte. A modernidade tende a tornar descartáveis também os ritos de passagem que se sobrepõem às esferas religiosas, como nascimento, casamento e morte.
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Outrora, morria-se em casa e, contra a vontade do poeta, havia choro, vela e fita amarela. Criança em Minas, acorri a enterros que eram uma festa, com toda a força paradoxal da expressão. Havia velório e carpideiras, cachaças e empadas, coroas de flores e procissão fúnebre, missa de corpo presente e encomendação no cemitério.
Hoje em dia, morre-se quase clandestinamente, e o enterro se faz antes que os amigos possam ser avisados, como se resistíssemos à ideia de que esta vida escapa ao nosso absoluto controle.
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A evocação da morte incomoda porque remete ao sentido da vida. Só assume morrer quem imprime à vida um sentido altruísta, que transcende a existência individual. Fora disso, a morte é brutal sonegação da vida.
Porém, já não se enfatiza o tema do sentido da vida. Na escola, aprende-se a competir, a ter sucesso, a dominar a ciência, a técnica e o patrimônio cultural de que somos herdeiros, mas não há nenhuma disciplina que prepare os alunos para as crises quase inevitáveis da existência: o fracasso profissional, a ruptura afetiva, a doença, a falência, a morte. Socializada a ambição, todas as vezes que o desejo esbarra na frustração ele privatiza o consolo: o alcoolismo, as drogas, o ressentimento, o lobo que nos devora o coração.
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A fé cristã não faz o discurso em louvor da morte, mas proclama o seu fracasso ao centrar seu eixo na “ressurreição da carne”. Isso significa a recusa de todas as situações de morte, do pecado individual às estruturas sociais incapazes de assegurar a todos um futuro melhor.
Proclamar que a vida tem a palavra final, inclusive sobre a morte, implica também empenhar-se para que a nossa juventude não se transforme numa geração perdida.
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Frei Betto é autor de ‘Fome de Deus’ (Editora Paralela)