Por felipe.martins

Rio - Certo mito apaziguador diz que a História do Brasil é caracterizada por um perfil relativamente pacífico. Uma análise, ainda que superficial, desmente esta máxima. Registram-se, ao longo da trajetória brasileira, quase 2.000 guerras, rebeliões, sedições e revoltas.

Temos exemplos contundentes de rebeliões de índios e negros escravizados, como a Confederação dos Tamoios (século 16), a Confederação dos Cariris (século 17) e o Quilombo dos Palmares (século 17); revoltas antifiscalistas do período colonial; conjurações separatistas do século 18; guerras civis de secessão no século 19, como a Farroupilha, no Sul, e a Confederação do Equador, no Nordeste; conflitos sociais no Brasil republicano, feito a Guerra de Canudos, no sertão da Bahia, a Guerra do Contestado, em Santa Catarina, e a Revolta do Caldeirão, no Ceará.

Ao mesmo tempo em que gritamos contra injustiças, somos também um país forjado em ferro, brasa, mel de cana, pelourinhos, senzalas, terras concentradas, aldeias mortas pelo poder da grana e da cruz, tambores silenciados, arrogância dos bacharéis, inclemência dos inquisidores, truculência das oligarquias, chicote dos capatazes, cultura do estupro, naturalização de linchamentos e coisas do gênero.

No meio de tudo isso, produzimos incessantemente formas originais de inventar a vida onde amiúde só a morte poderia triunfar. Um Brasil forjado nas miudezas de sua gente, alumbrado pela subversão dos couros percutidos, capaz de transformar a chibata do feitor em baqueta que faz o atabaque chamar o mundo. Um Brasil produtor incessante de potência de vida, no arrepiado das horas e no chamado de uma pluralidade de deuses bonitos como as mulheres e os homens.

Mergulhado hoje em uma crise política profunda — tempero sinistro de uma situação econômica complicada —, o Brasil que mostra suas garras não é este caldeirão de culturas potentes. É aquele do ódio escancarado, da naturalização dos privilégios em nome de causas e, ao mesmo tempo, dos discursos moralistas mais medonhos dos ditos “homens de bem”. No meio de tudo isso, uma democracia togada em que a própria democracia é solapada “democraticamente”.

Talvez seja a hora de reconhecer um Brasil que insistimos em fingir que não existe: a terra fraterna e hospitaleira também é um monumento ao ódio e um país excludente (projeto de estado meticulosamente bem-sucedido). Médico e monstro, o Brasil pode, como o primeiro, nos curar, e, como o segundo, nos apavorar. Ao mesmo tempo e o tempo todo.

E-mail: luizantoniosimas67@gmail.com


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