Rio - Desenhar o cenário de qual será o rumo do movimento que arrasta multidões de norte a sul do Brasil é uma tarefa que sociólogos, por enquanto, preferem não arriscar. O modelo de mobilização — apartidário, conectado à internet e com pauta de demandas aberta — é novo e intriga, positivamente, quem vem estudando o comportamento da sociedade brasileira.
Teóricos ouvidos pelo DIA concordam em outro ponto: não há como encaixar o que acontece atualmente com eventos passados da história como 64, Diretas Já, os caras-pintadas e outras manifestações que surgiram no mundo.
“É o primeiro movimento em que a população está politizada, e não permite ser conduzida por por partidos e autoridades. Não adianta diminuir o valor da passagem. O povo quer ser ouvido. Quem disse que não tem liderança? Cada grupo que forma aquela multidão tem sua liderança: é o pessoal a favor do aborto, contra, que quer casamento gay, que não quer....É uma multiplicidade de lideranças. O recado é claro: queremos participar, ser respeitados e ouvidos. E o foco é o poder público”, explicou o sociólogo e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ufrj), Paulo Baia.
Sem novo partido
Para o sociólogo Orlando Júnior, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano Regional (Ippur), da Ufrj, não deve emergir desses atos um novo partido, mas pode surgir um novo paradigma de mobilização, que é fundado em redes e alguma forma de articulação que vem da multiplicidade de demandas.
“Criar um partido seria repetir um antigo modelo. O movimento tem uma agenda que não se fecha. Está aberta e em construção. O que está acontecendo é um alerta, um grito, para que se amplie o espaço de participação popular e se fortaleça a democracia”, afirmou o estudioso.
De acordo com o juiz e cientista político João Batista Damasceno, a tendência é que a mobilização se esvazie em breve. Ele também não acredita que vá surgir uma nova legenda política a partir dos atos. “Existe um clima de insatisfação geral, que vem se acumulando. Mas o movimento está muito desorganizado”, opina.
Democracia participativa na Internet
A democracia participativa, que parece ser reivindicação quase unânime no furacão plural de pedidos dos manifestantes, tem um novo formato na internet. Não só as convocações para as marchas ganham velocidade com a ferramenta virtual.
É lá que o cidadão se sente incluído no movimento. Nos fóruns virtuais sobre os protestos, os jovens participam de votações para escolher o trajeto das passeatas e as novas demandas comuns. “No mundo virtual, a hierarquização é mais horizontal. Por isso, parece realmente ser mais participativo e inclusivo”, afirmou o sociólogo e professor da UFRJ Paulo Baía.
Não é de hoje que as novas tecnologias de informação vêm motivando teses sobre os atuais movimentos na sociedade. O sociólogo espanhol Manuel Castells já defendeu que as relações humanas, cada vez mais, vão acontecer no ambiente de multimídia. É a Era da Informação, que permite reproduzir em vários países protestos que acontecem aqui.
Grupos partidários são hostilizados
Se nas passeatas ocorridas até quarta-feira era possível ouvir o coro dos ‘sem partidos’, na marcha de ontem grupos partidários e sindicâncias firmaram presença caracterizados. Alguns militantes da Central Única dos Trabalhadores (CUT), PCdoB e PSTU foram hostilizados.
Na altura da prefeitura, na Cidade Nova, rapaz que carregava bandeira do PSTU foi agredido. Na Candelária, 10 militantes que vestiam camisas da CUT tiveram suas bandeiras quebradas. Logo depois, manifestantes vaiaram representantes da União da Juventude Socialista e do PCdoB.
Para evitar polêmica e confrontos, o presidente regional do Partido dos Trabalhadores (PT) no Rio, Jorge Florêncio, preferiu não aderir ao ato ‘Onda Vermelha’, criado em São Paulo pelo presidente nacional Rui Falcão.
O manifesto pedia que filiados fossem às ruas de vermelho e com bandeiras do partido. “A orientação é não levar bandeiras e ir vestido normalmente”, disse Florêncio. O deputado estadual Marcelo Freixo (Psol) disse que a participação partidária é legítima, mas não defende comando político nas manifestações.
“Os partidos não têm o direito de comandar a manifestação, mas de participar, sim”. Integrante do Movimento Passe Livre (MPL), o professor de História Gabriel Siqueira disse que ‘o movimento é apartidário, e não antipartidário. “Respeitamos todas as causas”.
Psicanalista define: é catarse coletiva
O conceito é usado pela Psicanálise, mas pode explicar em parte o que vem ocorrendo nas ruas do país. A catarse coletiva — termo usado por Sigmund Freud — está na pauta dos estudiosos que buscam entender o comportamento da multidão com cartazes e faixas que tem parado as cidades quase que diariamente.
E, neste sentido, o governante é visto como algoz, que, ao ser confrontando pela massa, provoca uma sensação coletiva de libertação psíquica.
“É como se eles (as pessoas que estão no protesto) expelissem um sentimento que estava oprimido. No inconsciente coletivo, esses governantes representam uma figura de autoridade que eles querem desafiar”, afirmou a psicanalista Roberta Bueno, que é da Escola Lacaniana de Psicanálise (RJ).
É resgatando Freud novamente e sua “psicologia das massas” que pode-se encontrar mais reflexões sobre o fenômeno brasileiro “vem para as ruas”. Trata-se de uma aglomeração formada por indivíduos com históricos e demandas diferentes, mas que alimentam uma espécie de alma coletiva de revolta.
“As pessoas estão indo para as ruas cada uma com uma questão pessoal, mas que têm o governo como foco central. As massas vão se formando como se alinhadas a um mesmo sentimento”, explicou a psicanalista.