Por tamyres.matos

Rio - Há exatos 20 dias, a vida de Elizabete Gomes estancou. Desde quando seu marido, o pedreiro Amarildo de Souza, foi abordado por policiais da UPP da Rocinha para nunca mais ser visto, ela e os seis filhos não fazem outra coisa senão procurar o homem magro, de olhos arregalados, tratado carinhosamente pelos vizinhos como Boi.

“Eu sei que ele está morto. A polícia matou meu marido”, lamenta. O drama dos parentes do pedreiro, tema obrigatório nas manifestações de rua por todo o país, é parecido com o de muitas famílias do Rio. Gente que há anos sofre em busca de pessoas amadas, também desaparecidas. Outros Amarildos, sumidos depois da abordagem da polícia, que deveria protegê-los. 

Não há estatísticas para medir a extensão do problema. “Foram mais de 90 mil desaparecidos no estado nos últimos 23 anos, mas não se sabe quantos estavam sob custódia policial”, explica o sociólogo Fábio Araújo. No ano passado, ele defendeu na UFRJ a tese de mestrado ‘Das consequências da arte macabra de fazer desaparecer pessoas’. O estudo mostra como a queda do número de homicídios em alguns anos do governo Sérgio Cabral coincide com o aumento do número de sumiços em território fluminense. Um indício de que os agentes da violência — traficantes e maus policiais — estariam usando um outro método de extermínio.

Outros casos de desaparecimento após abordagens policiais não tiveram solução, como os de Patrícia Amieiro, Jorge Careli, Fábio de Souza e Douglas Tavares Reprodução

Episódios assim levaram a ONG Rede Contra a Violência a apoiar um abaixo-assinado para forçar o governo brasileiro a cumprir a Convenção Interamericana contra o Desaparecimento Forçado. Em seu artigo primeiro, o documento estabelece que esse tipo de sumiço é uma violação inaceitável, e nem mesmo guerra, estado de emergência ou razões de segurança nacional podem justificá-lo. Enquanto a convenção não é respeitada por aqui, a alternativa pode ser o projeto de lei que desde 2011 tramita no Senado para transformar em crime a ação de quem colabora para o desaparecimento de vítimas, como Amarildo.

O DIA conversou com famílias que experimentam essa espera interminável. Entre elas, há muitas diferenças, como os bairros onde moram, as circunstâncias do desaparecimento e o peso da esperança num possível reencontro. Irmão da engenheira Patrícia Amieiro, desaparecida há cinco anos, depois de passar por uma blitz policial, Adriano não vê qualquer possibilidade de ela estar viva. “Devem ter queimado o corpo”, conforma-se. Já Denise Alves Tavares ainda sonha rever seu filho, Douglas, sumido em 2006, quando tinha 16 anos, depois de uma ação clandestina da PM na favela de Vigário Geral. “Meu coração de mãe me diz que ele ainda está vivo”, afirma, mesmo após tantos anos.

Também é diferente a disposição de cada família para seguir buscando justiça. Dona Izildete Santos, de 62 anos, continua lutando pelo reconhecimento de que foram policiais os responsáveis pelo sumiço de seu filho, Fábio, em 2003, no município de Queimados. Já dona Maria, 85 anos, mãe de Jorge Careli, o funcionário da Fiocruz que sumiu em 1993 durante operação da Polícia Civil, se desanimou desde que a Justiça reconheceu a morte presumida do rapaz.

Mais forte que as diferenças é o sentimento de angústia comum tanto à família de Amarildo, sumido há 20 dias, quanto à de Careli, desaparecido há 20 anos. Todas mantêm a vida em suspenso, desde que seus parentes evaporaram das mãos dos agentes pagos para defender o cumprimento da lei, mas que muitas vezes fazem justamente o contrário.

CONHEÇA OUTRAS HISTÓRIAS

Luta incansável

Fábio Santos, filho de dona Izildete Santos, tinha 20 anos quando sumiu em 2003,após uma abordagem policial. A família morava em Queimados na época. Desde então, fez de tudo para encontrá-lo: ação judicial, passeatas e até escreveu carta para o presidente Lula. Nada adiantou. Mesmo assim, a senhora de 62 anos não desiste: “Não vou deixar que esqueçam o que aconteceu com meu garoto”, garante ela.

Filho da Dona Ilzidete foi abordado em 2003 por PMs quando voltava de uma festa junina em Queimados. Nunca mais foi vistoMaíra Coelho / Agência O Dia

Mãe Coragem

Nos últimos oito anos, Denise Tavares mudou de casa 16 vezes. Foi empurrada pelas ameaças que recebeu dos policias apontados por ela como responsáveis pelo desaparecimento de seu filho, Douglas, da favela de Vigário Geral, em 2005. “Outros sete adolescentes estavam com ele, só eu tive coragem de denunciar”, conta. Não teve qualquer sinal de Fábio, mas não se arrepende. “Faria tudo novamente”.

O fim da esperança

No próximo dia 10, o desaparecimento de Jorge Careli, funcionário da Fiocruz, completa 20 anos. Essas duas décadas de tristeza marcaram a fisionomia da mãe, dona Maria Careli, 85 anos. Sem esperança de revê-lo, evita o assunto. Foi à favela da Varginha para ver o Papa Francisco, mas com emoção diferente dos outros: a missa aconteceu a poucos metros de onde seu filho teria sido levado por policiais da DAS, em 1993.

Sem nenhuma pista

Em 2008, após passar por blitz policial na Barra e ser perseguida por PMs, a engenheira Patrícia Amieiro, de 24 anos, desapareceu. Seu carro foi encontrado com vários tiros. “As autoridades simularam interesse no caso, mas nada fizeram”, lamenta o irmão, Adriano Amieiro. “É o que vai acontecer com a família de Amarildo”. Os quatro PMs acusados vão a júri popular, mas não há pistas sobre Patrícia.

Mais de 5,9 mil sumiços em um só ano

Dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) mostram que o número de pessoas desaparecidas no Rio tem aumentado bastante. No primeiro ano do governo Sérgio Cabral, 2007, houve 4.633 desaparecimentos. O número não parou de subir ano a ano e em 2012 chegou a 5.934 sumiços, alta de 28%. No mesmo período, os homicídios caíram 31%.

Para o sociólogo Fábio Araújo é preciso estudar o fenômeno. “Pode representar uma mudança dos métodos dos agentes da violência, como maus policiais e traficantes, que teriam passado a sumir com os desafetos”. “Desde 1990 até hoje, passam de 90 mil os desaparecidos”, contabiliza Araújo. De janeiro a maio deste ano, as ocorrências chegam a 2.655.

Delegado intima PM a depor

O delegado Rivaldo Barbosa, da Homicídios, e mais 25 policiais foram à Rocinha ontem investigar o caso Amarildo. Ele disse que o policial militar Juliano da Silva Guimarães, da UPP local, vai depor esta semana. Segundo o PM, um tio, motorista da Comlurb, foi obrigado por bandidos a levar um corpo para o lixão do Caju, em 28 de julho, duas semanas após o sumiço do pedreiro.

O Brasil é signatário da Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, mas pouco faz para punir os autores. Projeto, no Senado desde 2011, pode tipificar o crime de desaparecimento forçado. Defensores de Direitos Humanos propõem que o Estado seja responsabilizado por falhar na proteção dos cidadãos.

Você pode gostar