Rio - Atrás dos portões do antigo manicômio judiciário Heitor Carrilho, 70 ex-pacientes aguardam a chance de voltar à sociedade. Todos já ganharam liberdade judicial — alguns há 20 anos —, mas foram esquecidos pelas famílias e negligenciados pelo poder público. São homens e mulheres, a maioria com mais de 40 anos e com histórias que revelam a face mais dura na vida de um portador de sofrimento mental: o abandono. Estão lá ex-internos que cometeram homicídios e roubos, mas que, após tratamento, foram liberados porque tiveram considerada ‘cessada a sua periculosidade’.
A Secretaria de Administração Penitenciária (Seap) é uma “tutora” à revelia dos ex-internos, que sem ter para onde ir, vivem na condição de abrigados. Cada um custa, no mínimo, R$ 2,5 mil por mês ao sistema. Uma conta que ultrapassa R$ 2 milhões por ano. Isso sem falar na equipe disponibilizada para fazer o atendimento. Enquanto no sistema carcerário há um psicólogo para 500 detentos, no Heitor Castilho são quatro para atender os 70.
A Lei Antimanicomial de 2001 determina que, na ausência da família, o portador de doença mental que cometeu crime e está apto para o retorno more em residências terapêuticas — casas mantidas pelas prefeituras onde há apoio psicossocial. Mas os municípios não cumprem a determinação.
“Não tenho como exigir dos prefeitos que os recebam. Os ex-internos não são de nossa responsabilidade. A nossa preocupação maior é que eles não estão num ambiente ideal”, disse o coronel Cesar Rubem, secretário da Seap.
Pente-fino revelou internos que já poderiam ter saído
Os pacientes não têm uma “pena” em anos exata pré-determinada. São avaliados a cada seis meses para saber se estão aptos à liberação. Mas como não tem quem cobre sua saída, acabam esquecidos no sistema carcerário. Isso explica o fato de alguns passarem 30 anos reclusos no manicômio, e só terem tido a desinternação autorizada há dois, três anos. Com a ajuda do Ministério Público, os profissionais da Heitor Carrilho fizeram pente-fino na perícia psiquiátrica. O maior drama foi constatar que muitos já poderiam ter se ressocializado há alguns anos.
Sem contato com os parentes, Eliane Silvino, 52, acabou abandonada e passa os dias zanzando pelos corredores da unidade. Seu crime foi jogar o filho da janela da maternidade. Absolvida da pena, como acontece para pessoas com transtorno mental, cumpriu medida de segurança através de internação. Sua liberdade veio em 2009, após 24 anos ‘invisível’ ao sistema.
“Só queria uma visita”, lamenta. Curiosamente, apesar dos momentos de delírios, quase todos os ex-pacientes sabem exatamente o tempo que estão internados. José Maurício de Barcellos Filho, 44, foi “condenado’ após roubar uma bolsa, há cinco anos. Deveria ter saído em maio de 2012. “Meus irmãos me esqueceram, mas acho que um dia vão se lembrar de mim”.
Anos de solidão após roubo de bicicleta
Foi por causa de uma bicicleta roubada nos idos da década de 90 que Seu Carlinhos, nascido Carlos de Almeida Freitas, 66 anos, foi internado para tratamento psiquiátrico. Já são 21 anos numa rotina de solidão, em que as recordações do passado se misturam a uma expectativa de ilusão. “Tenho quatro irmãs e vou encontrá-las quando sair daqui”, planeja ele, que há 15 anos já poderia estar de volta à sociedade, após ter sido submetido a uma perícia psiquiátrica.
Com olhar calmo e fala pausada, Benedito Borges de Mello, 68 anos, se prepara para uma realidade que considera ainda mais díficil do que a reclusão: a liberdade. Dos 70 ex-internos, ele é o que está com o processo mais adiantado para ficar numa moradia assistida. Se tudo der certo, esta semana ele se muda para Jacarepaguá. Desde que pisou pela primeira vez na unidade, já se passaram 23 anos. “Não tenho ninguém me esperando lá fora. A única coisa que quero é ser livre.”
‘Aquilo virou um depósito de gente’, define Darlan
Impressionado com a situação dos 70 internos, o desembargador Siro Darlan enviou ofícios para 18 prefeituras e órgãos de Direitos Humanos, inclusive Alerj, cobrando responsabilidades.
“Aquilo virou um depósito de gente. Isso é resultado de falta de políticas públicas e de respeito à dignidade humana. Todos foram avisados. Não podem dizer que não são coniventes com esse crime, porque manter uma pessoa privada da liberdade, sem motivação, é crime”, afirmou o magistrado. Darlan também comunicou o caso ao Tribunal de Contas do Estado. “Há um desvio de finalidade. O dinheiro do orçamento destinado para estes internos é para cumprir pena. O Tribunal tem que ter conhecimento disso para tomar medidas.”