Por thiago.antunes
Rio - Sem saber ler e escrever, ele carrega, com vigor, a enxada com as mãos calejadas pelo tempo. As rugas profundas marcam o rosto pela idade, 67 anos. As roupas simples e o inseparável chapéu de palha remetem à história de vida de Sebastião Furtado. Trabalhador rural, como ele mesmo diz, desde que ‘se entende como gente’, a trajetória é oposta à que mostra o seu currículo no mundo dos negócios como empresário. Em nome dele há 13 empresas, entre elas, postos de gasolina e churrascaria com dívidas trabalhistas e tributárias incalculáveis. Só em multas expedidas pela Agência Nacional do Petróleo (ANP), os valores podem chegar a R$ 20 milhões.
Agricultores viram 'empresários' em ArealUanderson Fernandes / Agência O Dia

‘Seu’ Sebastião é uma das quatro pessoas humildes localizadas pelo DIA no pequeno município de Areal, Centro Sul Fluminense. Em comum, elas são analfabetas ou com pouca instrução, mas aparecem como sócias de 50 empresas com dívidas estimadas em mais de R$ 50 milhões. Ao todo, 12 pessoas, que alegam ser vítimas do megaesquema de fraude, lutam na 1ª Vara da Comarca de Três Rios, na 108ª DP da cidade, no Ministério da Fazenda e na Justiça do Trabalho para limpar os seus nomes. Dizem ter sido usadas como ‘laranjas’ de empresas montadas a partir de documentos pessoais entregues para trabalhar ou alugar casas na Fazenda e Haras Monte Bello S/A, conhecida como Rancho Fundo, em Areal.

“Todos os dias, eles recebem alguma notificação. Já não temos como calcular quanto essas pessoas humildes devem”, explica o advogado Adilson Costa, que junto com Antônio Carnevali, atua na defesa do grupo. Igor de Almeida Pereira, 28, por exemplo, com 20 empresas em seu nome, é o recordista na clientela dos profissionais.
‘Laranjas’ de Areal têm em comum pouca instrução e a honestidadeUanderson Fernandes / Agência O Dia

Nos processos localizados na Justiça, o contador e advogado Luiz Felipe da Conceição Rodrigues é apontado como o principal mentor intelectual das fraudes.Como a coluna ‘Justiça e Cidadania’ publicou com exclusividade em outubro, Luiz Felipe ficou bastante conhecido na década de 1990, quando chegou a ser preso por agentes da Polícia Federal. Em 2009, ganhou mais duas condenações na 8ª Vara Federal Criminal que, somadas, chegam a oito anos e nove meses de prisão. Mas ele recorreu das decisões e continua solto.

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Em decisão do Tribunal Regional Federal 2 (TRF2), publicada dia 12, a corte manteve uma das condenações em quatro anos, em regime aberto, substituída por prestação de serviços à entidade, a ser escolhida pelo juízo da execução penal e mais pena de pagamento de 50 salários mínimos, o equivalente a R$ 33.900,00.
Procurado pelo DIA, Luiz Felipe não foi localizado em dois endereços — um na Praça da Bandeira, Rio, e outro em Duque de Caxias, Baixada Fluminense. No Conselho Nacional dos Advogados (CNA), ele não registrou o endereço do escritório e o telefone.
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‘Não sei nem explicar tudo isso’

“Sou analfabeto e honesto. Não entendo de lei. Não sei nem explicar tudo isso que está acontecendo”, desabafa seu Sebastião Furtado, pai de cinco filhos. O jeito caipira e caladão fica agitado quando relembra o momento em que descobriu, em 2008, que era dono de restaurantes, frigorífico, posto de gasolina e até loja de cosmésticos no Rio. Aposentado, com salário de R$ 800, ele decidiu abrir conta bancária para receber o pagamento dos 'bicos'. A partir daí, as cartas de cobrança não pararam mais de chegar. “Fiquei tonto. Depois botei na mão dos advogados”, afirma.

Fábio entregou os documentos para alugar uma casa na fazenda%2C sem imaginar que entraria num pesadelo Uanderson Fernandes / Agência O Dia

Os 'bicos' que rendem até R$ 800 agora seu Sebastião recebe em espécie, para fugir das penhoras. Hipertenso, gasta com medicamentos cerca de R$ 300. “Preciso tomar calmantes e ainda ajudar nos remédios da minha esposa. Não posso parar de trabalhar”, revela.

O advogado Adilson da Costa lembra que na última audiência referente a uma das 13 empresas em nome de seu Sebastião, o juiz ficou chocado. A ação cobrava mais de R$ 100 mil. “Quando ele sentou, com seu chapeuzinho de palha, o magistrado perguntou onde estava o empresário? Respondi: ‘seria esse, excelência!’”, conta Costa.
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Como funciona o esquema
Nos processos referentes às vítimas citadas na reportagem, as 50 empresas, todas ligadas a Luiz Felipe da Conceição Rodrigues, estavam falidas. Mesmo assim, foram compradas pelos supostos empresários que se tornaram sócios, com uso de assinaturas falsas nos atos de alteração contratural.
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No processo 0009240- 33.2011.8.19.003, no qual Sebastião Furtado diz que não é dono da Nascon Empreiteira Ltda, os antigos representantes da então Nascon Engenharia e Comércio Ltda alegam que a negociação foi feita pela S/A Organização Excelsior Contabilidade e Administração, de Luiz Felipe. O advogado Edison Freire Neto sustenta que “Luiz Felipe foi o responsável pela coleta das assinaturas, registros e reconhecimento de firmas”.
Analfabetos, humildes e enganados
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Reconhecidos em ações de cobrança na Justiça e órgãos federal e estadual como megaempresários, eles não podem ter conta bancária. Na praça, estão com nomes sujos e figuram como réus em processos. No papel, Igor de Almeida Pereira, 28 anos, é dono de 20 empresas. “Só num banco devo mais de R$ 500 mil. Em um ano, mais de R$ 200 mil em dívidas trabalhistas”, desespera-se. Em 2004, Igor alugou pequena casa por R$ 200 por mês na Fazenda e Haras Monte Bello S/A. “Foi aí que entreguei meus documentos”, explica.
Agricultores analfabetos viram ‘empresários’ em esquema de fraude e acumulam dívidas de R%24 50 milhõesUanderson Fernandes / Agência O Dia

‘Dono’ de três empresas, o analfabeto Jorge Felipe, 60, tem execuções fiscais de até R$ 24 milhões. Pai de sete filhos, trabalha em obra. Também alugou casa por R$ 200 ao mês na fazenda entre 2004 e 2005. “Quando abri conta, comecei a ser procurado até por delegado da Receita. Nunca tinha comprado fiado e descobri que devo sei lá quantos milhões”, diz o pedreiro.
Para Fábio Lopes de Oliveira, 41, analfabeto, a notícia de que era sócio em 14 empresas caiu como uma bomba. “Meu mundo caiu. Tudo que fiz foi entregar documentos para alugar uma casa por três meses. Nunca fui dono de nada.Usaram nossos documentos e agora estamos nesse perrengue”, lamenta.

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