Prefeitura mantém contratos com ONG de PM suspeito de tortura, mortes e desvios
Levantamento feito pelo DIA verificou que apenas no ano passado a Casa Espírita Tesloo recebeu R$ 12 milhões de convênios ainda ativos
Por thiago.antunes
Rio - Superfaturamento, emprego duvidoso de verba pública, maus-tratos e envolvimento em autos de resistência. Nada disso impediu que a ONG do major reformado da PM Sérgio Pereira de Magalhães, envolvido em ao menos 42 mortes violentas, mantivesse a prestação de serviços à Prefeitura do Rio.
Levantamento feito pelo DIA nos dados do portal da transparência municipal verificou que apenas no ano passado a Casa Espírita Tesloo recebeu R$ 12 milhões de convênios ainda ativos com a prefeitura no âmbito da assistência social. Desde 2005, quando foi celebrado o primeiro contrato, até agora, a entidade recebeu quase R$ 58 milhões dos cofres públicos — a maior parte com dispensa de licitação.
Dos oito contratos ainda ativos, apenas um não é alvo de averiguação do Tribunal de Contas do Município (TCM). Em dois, foi pedida a tomada de contas especial. Outros dois contratos receberam alertas. Até outubro de 2012, a organização era responsável pelos abrigos especializados para crianças e adolescentes dependentes de crack. Ao fim do prazo, o TCM recomendou que a prefeitura não renovasse ou fizesse novos contratos com a Tesloo devido a uma série de irregularidades detectadas nas prestações de contas da ONG noticiadas pelo DIA.
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Na mira do MP
Atualmente, são responsabilidade da organização a cogestão das ações de proteção social especial de média complexidade na área da 10ª Coordenadoria de Assistência Social, em Bangu, e o projeto de gestão das ações de proteção básica e especial na área da 8ª Coordenadoria de Assistência Social, em Santa Cruz. Além disso, está sob sua coordenação o Lar Maria Augusta para adolescentes grávidas e bebês.
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Mesmo sem coordenar as atividades nos abrigos onde ficam os dependentes, a organização faz a triagem de meninos e meninas recolhidos das ruas. Um dos contratos ativos refere-se à cogestão dos centros de acolhimento de crianças e adolescentes Ademar Ferreira, Taiguara e Casa Viva. Em maio de 2013, cinco funcionários foram afastados depois da denúncia de tortura na central Taiguara.
Há dois anos, um relatório da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa alertava também para casos de tortura nas unidades de tratamento sob comando da Tesloo. Ainda em 2012, o Ministério Público propôs uma Ação Civil Pública que modificou os abrigos para tratamento de dependentes de crack. Hoje, a ONG Viva Rio administra os locais em cogestão com a prefeitura.
Há ainda quatro contratos que deveriam terminar em 2012, mas continuam ativos. O MP segue apurando o uso de dinheiro público. A promotora Gláucia Santana disse que desconhecia os novos pagamentos, mas que tudo será investigado: “Em caso de descumprimento da lei, os responsáveis serão indiciados”, afirmou ela.
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Para o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, Marcelo Freixo, a prefeitura deveria ter interrompido todos os convênios. “É um absurdo. Depois de todas as denúncias de falta de profissionais qualificados, de tortura e envolvimento com a milícia”, criticou.
Feijão da Tesloo 244% mais caro
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Auditoria feita pelo Tribunal de Contas do Município (TCM) no convênio entre a Tesloo e a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social referente aos abrigos de dependentes de crack verificou irregularidades dos dois lados.
Da ausência de notas fiscais de produtos à cobrança de R$ 495 mil por taxa de gerenciamento, o que é proibido, é difícil entender como a Tesloo usou a verba pública. Valores repassados à conta do convênio foram transferidos para outras da Tesloo — situação igualmente vedada.
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O TCM verificou também variação de preços de alimentos. O feijão carioca, por exemplo, custou 244% a mais para a Tesloo do que o valor indicado nas tabelas da Fundação Getulio Vargas, usadas como referência pelo Tribunal.
Além disso, em certa ocasião, a ONG comprou 485 quilos de feijão. Mas ao visitar as unidades, os fiscais não viram estoques compatíveis com as compras. O Tribunal ressaltou também o fato de a Tesloo ter feito 19 prestações de contas até outubro de 2012, mas em 35 meses a prefeitura não ter concluído a análise de nenhuma.
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Famílias buscam ajuda e não conseguem
Entre as atribuições da Tesloo, está o atendimento e proteção social básica e especial na 8ª CAS. Foi lá que Vanda dos Santos, de 38 anos, e o marido, Jorge dos Santos, 46 anos, procuraram ajuda. O casal vive com os três filhos, entre eles dois menores, na Vila Kennedy. Em janeiro de 2012, a casa onde moram há dez anos foi interditada por risco de desabamento de encostas atrás do terreno.
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Desde então, a família já esteve cinco vezes na 8ª CAS e na subprefeitura da região, mas a única opção oferecida até agora foi encaminhá-la para um abrigo, o que foi recusado. “Sei que tem risco aqui, mas como vamos morar em um abrigo?”, questionou Jorge dos Santos. Pouco antes do Natal, uma notificação tirou o sono do casal: se não arrumarem novo local para os filhos morarem, o Conselho Tutelar pode levar os adolescentes para um abrigo.
Em nova ida à 8ª CAS, o único apoio que receberam foi o cadastro no sistema de moradia e uma dica: pressionar a Secretaria Municipal de Habitação. “Não queremos nos separar. Parece que eles querem a gente debaixo da ponte”, disse Vanda, com lágrimas nos olhos.
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Na mesma rua, a vizinha dela Ana Paula Ramos, 38 anos, vive situação semelhante: “Também tenho medo de perder meus três filhos.” A secretaria alegou que, nesses casos, “faz o cadastro social e oferece a rede acolhedora” e que cabe à Secretaria de Habitação a inscrição no Minha Casa, Minha Vida e/ou aluguel social.
Prefeitura diz que segue TCM
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Questionada sobre os oito contratos com a Casa Espírita Tesloo, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social informou, por meio de nota, que acatou a recomendação feita pelo TCM de não renovar contratos com a ONG.
De acordo com a secretaria, os quatro contratos fora de vigência ainda estão ativos porque todas as prestações de contas não foram encerradas e nem há parecer conclusivo. O TCM informa, no entanto, que o prazo máximo de análise seria de 30 dias após o encerramento do convênio.
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Sobre o trabalho da Tesloo na 8ª e na 10ª Coordenadoria de Assistência Social, a secretaria informou que os profissionais da ONG atuam coordenados por assistentes sociais e servidores do município. O TCM pediu à prefeitura também que criasse normas para verificação imediata das prestações de contas. A secretaria explicou que os repasses são feitos a partir de cada prestação entregue. Procurada, a direção da Tesloo não retornou os contatos.