Por bianca.lobianco
Claudia foi baleada no Morro da Congonha e arrastada por mais de 200 metros pela viatura da PM durante 'socorro'Reprodução

Rio - ?Sucessão de erros que culminou numa ação desastrosa. Assim foi o ‘socorro’ prestado por três policiais militares à auxiliar de serviços gerais Cláudia Silva Ferreira, de 38 anos, no Morro da Congonha, em Madureira. Morta no domingo, ela acabou arrastada por viatura da PM por 250 metros. O caso chocou a sociedade e a própria corporação, que afirmou não tolerar a conduta dos policiais. Em depoimentos dados ontem à Polícia Civil e no inquérito aberto pela PM, os agentes, que estão presos em Bangu 8, tentaram explicar o injustificável: alegam que colocaram a mulher na caçamba porque moradores da favela cercaram o veículo de forma hostil e tentaram impedir a saída deles.

“Levaram minha mãe igual a um cachorro e mataram ela no meio do caminho”, desabafou, aos prantos, Taís da Silva, uma dos quatro filhos de Cláudia, que foi enterrada ontem à tarde no Cemitério de Irajá.

“A imagem (da vítima arrastada) a gente não tolera. O ser humano não pode ser tratado dessa forma. Aquela condução poderia ter sido feita amparada por um policial no banco de trás da viatura”, afirmou o relações-públicas da PM, coronel Cláudio Souza.

As imagens chocantes da vítima sendo arrastada pela rua, obtidas pelo jornal ‘Extra’, foram fundamentais para a prisão dos policiais, na manhã de ontem. Nelas, é possível ver que os PMs ainda tentaram subir com a viatura na calçada, o que pode indicar que eles teriam percebido que Cláudia havia caído.


FECHADURA SEM PROBLEMAS

Os subtenentes Adir Serrano Machado e Rodney Miguel Archanjo, além do sargento Alex Sandro da Silva Alves, foram presos por crime previsto no Código Penal Militar. Segundo investigações, os PMs alegaram que a porta da caçamba teria aberto porque moradores danificaram a tranca. No entanto, informações preliminares da perícia feita na viatura apontam que, aparentemente, não havia problema na fechadura.

Os acusados ainda alegaram que os moradores teriam tentado tomar a arma de um dos subtenentes. O advogado de um deles, Marcos Espínola, disse que o caso ‘foi um acidente’ e que vai entrar na Justiça com pedido de habeas corpus.

Após prestar depoimentos por mais de 10 horas na 2ª Delegacia de Polícia Judiciária Militar (DPJM), os PMs serão ouvidos novamente amanhã na 29ª DP (Madureira). A investigação foi desmembrada em três inquéritos diferentes, que vão apurar a morte e o socorro prestado a Cláudia; o suposto auto de resistência registrado pelos PMs (um suspeito foi morto) e o flagrante apresentado por eles. No domingo, os policiais fizeram operação de combate ao tráfico na comunidade. Os outros dois PMs que estavam na ação serão ouvidos na 29ª DP. São eles: Rodrigo Boaventura e Zaqueu de Jesus Bueno.

A necropsia feita no corpo de Cláudia indica que ela morreu por causa do tiro no peito, que causou lesões cardíacas e pulmonares. O corpo também sofreu diversos ferimentos provocados pelo contato com o asfalto, que o marido da vítima, Alexandre Fernandes da Silva, classificou como tendo ficado ‘em carne viva’.

Em nota, a PM diz que não compactua com a conduta dos agentes e que eles foram desligados do 9º BPM (Rocha Miranda). As armas dos PMs foram entregues à perícia.

Cerca de 200 pessoas participaram do sepultamento de Cláudia Ferreira da Silva%2C na tarde desta segunda-feiraAlessandro Costa / Agência O Dia

Vizinhos protestam durante e depois do funeral

‘A PM matou mais um morador de favela do Rio de Janeiro’. A frase, escrita por moradores da Congonha numa faixa preta, foi aberta no enterro de Cláudia Ferreira e, depois, no protesto que fechou pelo segundo dia seguido a Av. Ministro Edgard Romero, em Madureira, na altura do Morro do Cajueiro. Cerca de 200 pessoas estiveram no funeral, no Cemitério de Irajá, ontem à tarde.

Marido de Cláudia, o vigia Alexandre Fernandes da Silva estava inconsolável, assim como os quatro filhos e os quatro sobrinhos que ela criava. “Foi descaso! Jogaram ela que nem bicho dentro do carro e saíram. Pessoas a viram sendo carregada pelos PMs, agonizando. Vamos processar o estado”.

Alexandre disse ainda que não teve coragem de ver o vídeo em que a mulher aparece sendo arrastada pela viatura da PM após ser ‘socorrida’ pelos policiais. “Uma perna ficou em carne viva. O traficante que foi morto eles (PMs) ficaram velando o corpo até o socorro chegar. Com a minha mulher, eles ainda demoraram para tirá-la de lá”, afirmou o vigia.

O irmão de Cláudia, Júlio César Silva Pereira, acusou os PMs pela morte dela. “Eles (policiais) disseram que ela era traficante e estava armada. As armas dela eram três notas de R$ 2 e um copo de café. Ela tinha saído para comprar pão para os filhos”.

No enterro, colegas de trabalho de Claudia no Hospital Marcílio Dias, uniformizados, chegaram juntos. Chorando, eles gritavam clamando por ‘justiça’.

Moradores voltam a fechar a Avenida Ministro Edgar Romero após sepultamento de mulher que foi arrastada pela viatura da PM durante socorroAlessandro Costa / Agência O Dia

Fogo em barricadas e PMs xingados

A manifestação após o enterro começou pouco antes das 14h com cerca de 100 pessoas. Até às 17h, as duas pistas da Edgard Romero, em frente ao Cajueiro, estavam fechadas. Na Rua Leopoldino de Oliveira, um dos acessos à comunidade, grupo ateou fogo em barricada e xingou PMs, e bombas explodiam perto de manifestantes. ‘Ah, é assassino’ e ‘Ô, ô, ô, mataram um morador’ eram alguns dos gritos de ordem.

Ontem à tarde, a Defensoria Pública do Rio informou que entrou em contato com o marido de Claudia Ferreira, Alexandre da Silva, para prestar assistência. O viúvo deve ser recebido amanhã, às 13h30, pelo coordenador do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos, defensor Francisco Horta.

Na ocasião, o coordenador vai colocar em pauta a assistência de acusação no processo criminal e a ação indenizatória em favor da família da vítima.

Moradores voltam a fechar a Avenida Ministro Edgar Romero após sepultamento de mulher que foi arrastada pela viatura da PM durante socorroAlessandro Costa / Agência O Dia

Especialistas criticam ação e ressaltam a importância do resgate

As imagens de Cláudia sendo arrastada pela viatura reacenderam o alerta da sociedade para o tratamento dado por policiais a pessoas feridas. A atuação deles e a ausência do Corpo de Bombeiros nessas operações são contestadas por especialistas.

“Não é compreensível que um ferido seja transportado sem imobilização e suporte. O tempo de resgate é precioso. A operação pressupõe que pode haver feridos”, disse Jorge Darze, presidente do Sindicato dos Médicos.

De acordo com Paulo Storani, ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais (Bope) e especialista em segurança, a arbitrariedade teve início no momento em que a mulher atingida foi posta no carro da PM.

“O protocolo diz que a vítima deve ser imobilizada e receber os primeiros socorros de policiais. O local deve ser isolado até que o Samu, a quem cabe o deslocamento até o hospital, chegue”, ressalta. “Os PMs assumiram os riscos do transporte e devem ser punidos pela quebra no protocolo”, diz.

Para a socióloga Silvia Ramos, o caso trouxe à memória a morte do pequeno João Hélio, em 2007. “Na ocasião, o crime foi cometido por bandidos sem farda e em uma época em que o Rio não era considerado ‘pacificado’. O carioca tem traumas em relação a políticas de segurança pública e, mais uma vez, a polícia está perdendo a guerra por uma imagem melhor”.

Investigação

A polícia quer esclarecer várias pontos divergentes nos depoimentos dos três PMs presos, em relação a fatos e a informações fornecidas por moradores da comunidade e parentes da vítima;

Os PMs disseram ter colocado Cláudia na caçamba porque não conseguiram abrir as portas traseiras da viatura, já que a viela onde estava o carro era estreita. Mas em nenhum momento, após a saída da comunidade, trocaram a vítima de lugar no carro;

Ao advogado Marcos Espínola, um dos policiais também contou que Cláudia não foi colocada no banco traseiro porque o mesmo estava cheio de armamento;

Os policiais militares contaram também que decidiram colocar Cláudia no porta-malas para sair rápido do local. No entanto, moradores disseram ontem que o carro permaneceu parado na comunidade por cerca de meia hora, com a vítima dentro;

A perícia preliminar não constatou a suposta avaria na fechadura da caçamba;

Aos investigadores, os acusados alegaram não terem visto a porta se abrir. Mas, segundo informações da polícia, além do barulho provocado pela abertura da porta, motoristas também alertaram os acusados sobre o que ocorria;

Após parar e tirar Cláudia no chão, novamente os PMs a colocaram na caçamba.




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