Por nara.boechat

Rio - A impressão de que a Justiça fecha os olhos para os autos de resistência, quando policiais matam em supostos confrontos, virou tese de doutorado na Universidade Federal Fluminense (UFF). Estudo do delegado Orlando Zaccone mostra que as justificativas para o arquivamento dos casos entre 2003 e 2009 — quando 99% dos inquéritos não foram adiante — não se sustentam. Há desde repetição de sentenças até contradições entre os inquéritos e os argumentos dos juízes. Zaccone é o mesmo delegado que desmascarou a tentativa de acobertar o desaparecimento do ajudante de pedreiro Amarildo. E foi acusado de doar dinheiro a um evento da black bloc Sininho.

“Vi coisas absurdas. Há casos em que a morte da pessoa é sua única anotação criminal”, diz o delegado. “E ela é usada para justificar o pedido de arquivamento”, afirma. O caso da morte de um menino de 14 anos impressiona. Segundo Zaccone, a polícia alega que ele estava armado e lançou uma granada antes de ser baleado. “O pai do garoto admite seu envolvimento, mas diz que ele não tinha autorização do tráfico para ter arma porque era ‘olheiro’. Mesmo assim o juiz não investiga sua morte.”

No caso Amarildo%2C Zaconne desmascarou farsa montada por policiais. “Vi coisas absurdas. Há casos em que a morte é a única anotação criminal”Fabio Gonçalves / Agência O Dia

As incoerências são inúmeras. Zaccone estudou 308 processos entre 2003 e 2009, período da pesquisa do sociólogo Michel Misse, base para ‘Indignos de Vida’, livro a ser lançado mês que vem. “A Justiça se apega mais ao que falam do morto do que aos fatos de sua morte. Há processos em que vale o que dizem os vizinhos, não o escrito no inquérito”, diz.

A pena de morte informal, como o delegado classifica o procedimento, não tem paralelo. Dados da Anistia Internacional sobre mortos condenados por sentença em 2011, excluindo a China, apontam para 676 pessoas executadas, com autorização, no mundo. Segundo a pesquisa, no mesmo período, 961 pessoas morreram em autos de resistência no Rio e em São Paulo. “Matamos 42% a mais do que nos 20 países em que a pena de morte é legal.”

O foco do estudo é o Ministério Público, responsável pelo arquivamento dos inquéritos, e sua imagem sai bastante arranhada. “Legítima defesa policial, para o MP, é estar numa favela e enfrentar quem tem antecedentes criminais”. Para ele, a sociedade avaliza a morte se a vítima estiver neste caso.

Impressionam ainda os inúmeros relatos sobre lançamento de granadas — apenas num dos 308 inquéritos ela aparece como detonada. Zaccone não entende como juízes ignoram tantos artefatos sem terem sido acionadas e não pedem diligências e investigações. Outro fator que chama sua atenção é a quantidade de revólveres 38 e pistolas encontrados ao lado dos mortos. “Foram pouquíssimas metralhadoras ou fuzis. Onde está o poder de fogo do tráfico?”

Dinâmica do caso Cláudia é semelhante

O caso de Willian Possidônio, morto no Morro da Congonha domingo passado, onde Cláudia Ferreira da Silva também foi morta após suposto confronto entre policiais e bandidos, tem a conotação dos estudos de Zaccone. Num deles, o juiz determina o arquivamento, afirmando que duas armas estavam com o morto. O que espanta é que, no inquérito, uma das armas era do PM.

Outra prova do pouco aprofundamento das investigações é o caso em que o inquérito sai da delegacia classificado de forma errada. Em vez de Auto de Resistência, sai como Resistência, crime totalmente diverso. Mesmo assim, é arquivado como se houvesse confronto. “É evidente que promotor e juiz assinaram sem ler.”

Para ele, o caso Amarildo é emblemático da situação que transforma um grupo de cidadãos em ‘matáveis.’ “Tentaram justificar seu sumiço por um possível envolvimento com o tráfico. Como se isso bastasse para ele merecer a morte.”

Incoerência nos arquivamentos

VALE SÓ UM LADO
“(...)prestou depoimento o pai da vítima (de 14 anos), informando que a mesma (...) fazia parte do tráfico, sendo sua função ficar em cima da laje com um rádio (...); que não acredita que seu filho estivesse na posse de uma granada... Ocorre que, até a presente data, não ficou demonstrado que o disparo (...) originou-se da arma de um dos policiais (...). Esgotadas as diligências cabíveis, não foi possível esclarecer a autoria do delito (...). Requer (...) o arquivamento. (Processo 2007.001.106447-2).

VIZINHAS FALADEIRAS
“A única testemunha ouvida no inquérito, o avô da vítima, Sr. J.B.V. (fls. 49), afirmou que seu neto realmente estava envolvido com drogas e, segundo comentários da vizinhança, no dia do confronto, portava uma pistola, o que dá credibilidade à tese de um confronto armado.” (Processo adm. 2006.001.69121.00).

ARGUMENTOS IGUAIS 1
“Diante das provas periciais (...) resta patente (...) legítima defesa, (...) senão vejamos. Primo, no local foram recolhidos munição e arma de fogo usada pela vítima (...). Secundo, a mãe do falecido, à fl. 48, narra que seu filho estava envolvido no tráfico. Tertio, a localidade (...) é conhecido ponto de venda de drogas (...) evidenciando a injusta agressão cometida contra os milicianos ouvidos na DP, que reagiram em legítima defesa”. (Processo número 2004.207.004774-6).

ARGUMENTOS IGUAIS 2
“Primo, foram encontradas duas armas de fogo próximas ao de cujus (...) (No registro, estava apenas um 38. A outra era de um policial). “Secundo, o local do crime é ponto de venda (..) sendo encontrados com o falecido sacolés de maconha.” (No registro, os sacolés estavam próximos, não com ele). “Tertio, a FAC do morto revela 3 anotações criminais (...) robustecendo tese de que estava envolvido no tráfico.” Processo 2008.001.314617-2.

PALAVRA QUE NÃO VALE
“(...)A tese trazida pela tia de que ela fora executada pelos PMs quando já havia entregue a sua arma não encontrou eco nas (...) provas (...) Por acima exposto, requer o Ministério Público o arquivamento. (Processo 2006.001.144274-8)

MÃE IGNORADA
(...) J. possuía duas condenações (...)A mãe afirmou que, de acordo com comentários, seu filho, usuário de drogas, fora assassinado sem chance de defesa... O relato (...) é baseado em supostos “comentários”, sendo que a FAC (folha de antecedentes criminais) de J. parece contradizer (...) (Processo 244689-94.2010.8.19.0001)

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