Rio - O desejo de ter madeixas lisas deixou de ser exclusividade de mulheres jovens e adultas para entrar na lista de desejos de crianças com idade cada vez mais tenra. São miúdos a partir dos 3 anos que invadem os salões para entregar suas cabecinhas às famosas escovas progressivas e a outras técnicas de alisamento. Alguém, por acaso, lembra de alguma história infantil em que o príncipe ou a princesa tenha cabeleira encaracolada?
Ana Carolina, de 8 anos, é uma delas. Simplesmente linda, dona de olhos doces e sorriso cativante, a menina conta de maneira singela qual era a sua maior cobiça: “Queria enfiar os dedos no cabelo e jogá-lo para trás”, descreve, enquanto faz o gestual e esbanja autoconfiança com seu novo look. Antes da transformação, o rabo-de-cavalo era seu companheiro inseparável.
A mãe, Geciara Silva de Souza, que tem cabelos naturalmente escorridos até quase a cintura, apoiou a filha na decisão. “No parquinho de shopping, outras crianças diziam para minha filha sair porque ela tinha cabelo ruim”, conta a mãe que passou a fazer pré-escova progressiva a cada seis meses e, de dois em dois meses, a retocar a raiz.
Na avaliação da psicóloga Maria da Conceição Nascimento, que integra a Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia, não se pode esquecer o processo histórico de escravização, que marginalizou a cultura africana como produto de segunda classe. O belo passou a ser relacionado com o branco. “A criança é bombardeada diariamente com um modo de vida que nem sempre retrata a realidade dela. Até onde é o seu desejo alisar os cabelos e até onde é o desejo de todo mundo?”, questiona.
Para ela é difícil escapar de uma certa imposição do modelo padrão. “É um modo de viver construído pela escola, pela família, pelas redes, enfim. É um olhar que ganhou força com as teorias racialistas de que tudo que é ou representa o negro é ruim. Faz com que elas se vejam feias com as suas características naturais”, dispara a psicóloga.
Giovanna, de 3 anos, já fez relaxamento nos cachos. E o irmão João Guilherme, de 8 anos, alisa as madeixas desde os 6 para poder arrepiar os fios no alto da cabeça. A mãe Jacqueline de Oliveira Amaral conta que muitos colegas de escola do filho também alteram a textura do cabelo para produzir o penteado no estilo Luan Santana. “Há uma imposição de padrões de consumo. 'Agora tenho o que preciso ter para ser bonito'. A autoestima da criança aumenta. Tudo o que se vende é um modo de vida”, diz a psicóloga.
Discriminação que começa em casa
Segundo Maria da Conceição Nascimento, muitas vezes o bullying começa em casa, com a mãe reclamando da dificuldade para pentear o cabelo crespo ou cacheado da filha, que exige mais tempo e mais cuidados. “A criança ouve aquele discurso e começa a se considerar menos bonita”, acentua. A internet esbanja debates sobre o alisamento em cabelos de crianças.
No Blog da Andrezza, por exemplo, uma mãe paulista chama os cabelos da filha de “murundu da jenu” e afirma que a jovem faz escova inteligente (sem formol) desde os 8 anos de idade. Na opinião da mulher, é melhor alisar do que “passar um monte de coisa melequenta” no cabelo, e para que ninguém aponte a filha na rua como a “louca que saiu do hospício”.
Não há idade mínima para uso do formol
A legislação brasileira proíbe a mistura do formol em produtos químicos. O uso dessa substância só é permitido em concentração de 0,2% como conservante. O fabricante é obrigado a indicar a faixa etária à qual se destina o produto, mas não há lei que determine qual a idade mínima para a utilização do produto.
Entre as substâncias ativas com propriedades alisantes permitidas pela legislação estão o ácido tioglicólico e os hidróxidos de sódio, de potássio, de cálcio, de lítio e de guanidina. A Vigilância Sanitária do município do Rio de Janeiro promove fiscalização em salões de beleza para coibir o uso do formol. As operações são feitas a partir de denúncias.
Fios muito finos de crianças podem se quebrar com facilidade
Especialistas condenam a atitude das famílias que insistem no cabelo liso para os pequenos. Uma das mais respeitadas terapeutas capilares Sheila Bellotti compara o alisamento de cabelos de crianças a uma prática criminosa. “É totalmente contraindicado, até porque a criança ainda está passando por mudança hormonais”, critica. Ela explica que os pequenos têm os cabelos muito finos, delicados, e os fios podem se romper mesmo quando as substâncias usadas são permitidas pela legislação.
A terapeuta recomenda o alisamento apenas em adolescentes. “Depois dos 13, 14 anos, se for necessário, não tem problema, desde que não seja à base de formol, que é cancerígeno e altera o folículo capilar causando um verdadeiro estrago”, orienta. Sheila já repreendeu uma mãe, moradora de Copacabana, que fazia escova progressiva na filha de oito anos.
“A química danificou muito o cabelo da menina. A mãe queria que eu recuperasse os cabelos da filha, para que ela voltasse a fazer a progressiva”, relembra. Quem não tem cabelos lisos deve redobrar os cuidados, como lavar bem a cabeleira e usar produtos de qualidade. “O segredo é tratar o cabelo da criança, em vez de utilizar químicas para deixá-lo liso”, finaliza