Por thiago.antunes

Rio - Meu coração, não sei por quê, bate feliz, quando te vê. Os versos de Braguinha, emoldurados pela melodia serena de Pixinguinha, inundam a Praça São Salvador na manhã de domingo. Admirável perceber como a canção que surgiu em 1917 como uma “polca vagarosa”, no dizer de seu autor, e que permaneceu por duas décadas como música instrumental, tomou rumo de hino popular ao receber a letra de João de Barro, em 1936. Olhando ao redor, não se vê gente indiferente ao som que brota dos instrumentos na roda de músicos que, há sete anos, transforma essa praça em quermesse de interior.

E os meus olhos ficam sorrindo. Os de uma senhora sentada nos degraus do coreto estão marejados. Todos cantam, e até as conversas em volta por um momento se calam diante daquele coral de vozes. Quando tudo começou, em maio de 2007, aquele cantinho de Laranjeiras era um abandono só. Um grupo aprendizes, muitos alunos da Escola Portátil de Música, deu de se reunir ali no coreto, sob uma árvore frondosa. A reunião informal, a partir de 11h, ganhou o nome de Arruma o Coreto, brincadeira com o pessoal do bloco Bagunça Meu Coreto, que se encontrava no mesmo lugar.

Olhando ao redor, não se vê gente indiferente ao som que brota dos instrumentos na roda de músicos que, há sete anos, transforma essa praça em quermesse de interiorAlexandre Medeiros / Agência O Dia

E pelas ruas vão te seguindo. A praça renasceu a partir do choro. Conduzido pela flautista Ana Claudia Caetano, o grupo foi crescendo e hoje abriga, em média, 20 músicos. Eles chegam com seus instrumentos, partituras e banquinhos, e só vão embora quando a fome aperta, já no início da tarde. O jornalista Lima de Amorim é um deles. Começou timidamente com seu cavaquinho, tentando ajustar os acordes que lhe pareciam indecifráveis no início do aprendizado. Agora ali está ele, o chapéu-panamá e o imponente banjo, o som brotando das cordas com desenvoltura.

Mas mesmo assim, foges de mim. Até quem não está perto da roda fica impregnado pela harmonia. As barracas ao redor. Ímãs de geladeira, bolsas, cintos, camisetas, roupas de bebê. Rabada com polenta e agrião, feijoada, empadinha de camarão. Uma cerveja gelada, a pipoca, o algodão-doce. O chorinho como trilha sonora da felicidade simples de tanta gente.

Ah, se tu soubesses como eu sou tão carinhoso e o muito, muito que te quero. Casais de namorados de todas as idades dançam passos abraçados, de mãos dadas. A avó brinca com a netinha, o pai com a filha. Tem aniversário ali ao lado, com bolo e brigadeiro, língua de sogra e bola de encher. Tem gente com a compra da feira já feita. Ou por fazer. Pra que a pressa, se é domingo?

E como é sincero o meu amor, eu sei que tu não fugirias mais de mim. As crianças brincam no pula-pula, ou em torno do chafariz onde está a escultura La Font, feita em 1878 na França pelo artista Louis Sauvageau. Foi instalado ali em 1903 e consta que é o único dos monumentos franceses importados pelo prefeito Pereira Passos que não mudou de lugar.

As crianças que brincam ao redor do chafariz não sabem disso. Uma delas também não sabe, mas a dançadinha que deu agora há pouco foi ao som de ‘Bole-bole’, um clássico de Jacob do Bandolim.

Vem, vem, vem, vem, vem sentir o calor dos lábios meus, à procura dos teus. Mais um clássico de Jacob, o ‘Doce de Coco’ deixa a roda mais romântica. Na barraca do Luizinho, sai mais uma caipirinha de lima-da-pérsia com pimenta-rosa, pode ser com vodca nacional ou importada, rum ou cachaça mineira. E leva um CD do Zé da Velha, do Martinho ou do Moacyr Luz. Nessa conjuntura, como diz a letra de ‘Doce de Coco’, toda desavença parece passageira e vale até comparar a amada “a um esparadrapo que não desgrudou de mim”.

Vem matar essa paixão, que me devora o coração. Tem até bolo de chocolate na roda, com a velinha dos sete anos. A indefectível ‘Na Glória’, de Raul de Barros e Ary dos Santos, soa como ‘Parabéns a Você’. O povo em volta sabe quando chega a hora de cantar o refrão “Na Glória”, os ensaios semanais de tantos anos aperfeiçoaram a harmonia. Tem casamento que não dura sete anos.

E só assim então serei feliz. Foi aqui que, em certo domingo, Dona Celina cantou ‘Carinhoso’ com sua voz de menina, tendo os netos em volta. Deve ter lembrado de outros encontros, tantas alegrias vividas. Muita gente volta no tempo ali na praça. E depois que a roda acaba, vai cada um pro seu lado, viver a rotina onde as agruras parecem suplantar os bons momentos. Mas só parecem.

Cada vez que te vejo, Dona Celina, eu desminto a tese. Os bons momentos podem ser poucos, mas permanecem. Por isso meu coração — e eu sei por quê — bate feliz quando te vê, mãe. Que você tenha um domingo feliz. Bem feliz.

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