Rio - Uma banquinha com a inscrição ‘Limpe o seu nome’ foi o chamariz para moradores das comunidades Final Feliz, em Costa Barros, e Inhoaíba, na Zona Oeste, caírem no conto do advogado. Com os documentos de pessoas com o nome sujo na praça, ações eram distribuídas na Justiça sem que o interessado soubesse.
A enxurrada de processos chamou a atenção do Tribunal de Justiça e do Ministério Público. Em pouco mais de dois anos, uma rede de 11 profissionais que lesou empresas e pessoas foi investigada. Nove respondem por estelionato, falsificação de documentos, uso de documento falso e falsidade ideológica.
A promotora Angélica Glioche, da 1ª Promotoria de Investigação Penal, revela que recebe em média de 50 a 100 queixas-crime, por mês, enviadas por juízes contra advogados suspeitos. “Já fiz mais de 300 denúncias desse tipo”, afirmou Angélica. O golpe começa com a captação de clientela, proibida pelo estatuto da OAB. Na comunidade Final Feliz, um grupo de mulheres foi arregimentado pelo advogado Thiago David Fernandes, com intuito de limpar o nome no Serasa.
Com os documentos, procurações fraudadas e comprovantes de residência montados, ele acionava a Justiça. Para o sucesso do trambique, os advogados contam com o fato de as empresas optarem por fazer acordos extrajudiciais. “Eles agem individualmente. Contam com o fato das empresas, para economizar, fazerem acordo de R$ 700 a R$ 1 mil antes da audiência. Ou seja, a empresa não verifica se o que está sendo alegado é correto, mas paga”, critica o juiz Flávio Citro, do 2º Juizado Especial Cível, da capital.
O magistrado descobriu fraude em 100 das 300 ações do advogado Thiago David. Para isso foram feitos exames grafotécnicos. Em um dos casos, ele processou a Itaucard, Casas Bahia, Telemar e Itaú por inserção do nome do consumidor no Sistema de Proteção ao Crédito. “Em depoimento, o cliente negou a contratação do advogado. Entregou os documentos dele a quatro mulheres que se autointitulavam assistentes sociais para retirar a restrição ao crédito, mas nunca assinou procuração para Thiago David”, explicou Flávio Citro.
Para a promotora Angélica Glioche, os recordistas são o casal Fernanda Kengen Taboas e Pedro Borba Taboas. Sócios de um escritório, segundo o juiz da 43ª Vara Criminal, Rubens Roberto Casara, em cinco anos em varas cíveis, ela patrocinou mais de 7.500 demandas.
Alegava que os autores, que na maioria das vezes não sabiam do processo em curso, não tinham relação com as empresas que levaram seu nome ao Serasa. O Tribunal de Justiça criou uma comissão em 2011 para analisar os casos nas varas cíveis. Fernanda responde a 180 ações ou inquéritos.
Na semana passada, a desembargadora Maria Sandra Kayat Direito manteve a decretação de prisão preventiva da advogada Fernanda. “A comissão concluiu que esta foi uma das maiores fraudes perpetradas por advogados no Rio”, afirmou Maria.
Juiz cobra mais ação, e OAB diz que analisa denúncias
O juiz Flávio Citro cobra da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ) combate à captação irregular de clientela. “Já enviei dois ofícios ao presidente Felipe Santa Cruz e não há resultados”, argumentou. Para o presidente da entidade é preciso separar o joio do trigo. “Cometer fraude depõe contra a advocacia. A Ordem também não quer esse profissional”, disse Felipe Santa Cruz. Só no ano passado, a Ordem cassou mais de 60 carteiras.
O presidente da OAB faz questão de ressaltar que a instituição não é um tribunal de exceção. Alega que não basta enviar ofício à entidade e exigir resultado imediato. “Toda semana comunico ao tribunal que tem juiz que não quer trabalhar. São uns 25 magistrados. Os chamados TQQs (referência aos que só trabalham as terças, quartas e quintas-feiras). Então, não basta a comunicação do juiz Flávio Citro. Há procedimento a ser feito, com direito a defesa”, explicou.
Para Felipe Santa Cruz, a enxurrada de processos no Judiciário também não é sinônimo de fraude ou litigância de má-fé, ou seja, quando o advogado age para enganar a Justiça. “O tribunal acha que tem problema ter muitas ações. Não é bem assim. A Cedae, por exemplo, não presta um bom serviço. Cobra taxa de esgoto onde não tem, então há muitas ações. Mas o tribunal é o maior amigo das concessionárias”, criticou.
O presidente da Ordem criticou ainda a atuação dos Juizados Especiais, chamando o órgão de uma espécie de ‘jogo de faz-de-conta’. “O juiz é leigo. Os servidores são estagiários. No tribunal, os juizados são considerados lixões”, analisou. De acordo com a Ordem, dos nove advogados denunciados à Justiça, três já foram excluídos, e os outros respondem a procedimentos disciplinares. “Se forem condenados também serão excluídos”, informou Santa Cruz.
Por dentro dos golpes
Com a atuação dos advogados, o juiz do 2ª Juizado Especial Cível, Flávio Citro, identificou como são as fraudes nos processos e até litigância de má-fé, quando o profissional tenta enganar a Justiça.
Captação irregular de clientela para praticar fraudes. A pessoa entrega a documentação para retirada do nome do Serasa. A partir daí, procurações são fraudadas e endereços falsos são anexados aos processos. Ao ser acionada, a empresa, sem checar as informações, propõe acordos extrajudiciais de R$ 700 a R$ 1 mil.
Litigância de má-fé, quando o advogado age para enganar a justiça. Distribui vários processos em nome de uma única pessoa. Exemplo: o autor da ação reclama que uma empresa de telefonia cobra taxas. Para cada mês do ano, ele entra com uma ação diferente. O juiz Flávio Citro chama isso de industrialização da demanda. Segundo o magistrado, quando a litigância de má-fé é identificada, o advogado é multado em 20% do valor da causa, ou seja, quanto ele estima receber pelo dano moral e material.
Processo artificial ocorre quando na ação o autor reclama de ter sofrido dano, mas sabe que é mentira. Ou seja, quer ser ressarcido porque teve o nome colocado no Serasa, mas sabe que estava em dívida com a empresa. O golpe dá certo porque as empresas preferem fazer acordos e pagar do que checar se as informações estão corretas.
TJ faz alerta geral para evitar ações irregulares
O combate do Tribunal de Justiça às fraudes, processos onde os autores mentem com relação a reclamações contra as empresas, a chamada industrialização, e o fracionamento de pedidos em várias ações reduziram o número de processos nos sete Juizados Especiais Cíveis da capital, o equivalente a 33.600 ações, desde setembro.
“O tribunal está alertando os outros juizados do estado. Com essas medidas reprimimos as demandas”, revelou o juiz Flávio Citro. Um dos principais alertas aos magistrados são os acordos extrajudiciais entre advogados e empresas. “Isso foi uma das coisas que mais me chamaram a atenção. Imagine um advogado fazendo inúmeros acordos. O que significa que não havia a audiência”, contou.
Segundo o magistrado, para sacramentar a descoberta da fraude, os supostos clientes foram chamados e os peritos do tribunal analisaram os processos e identificaram a falsificação de assinaturas.