Rio - Mais de dois séculos e meio após sua criação, a Justiça do Rio pode ter, enfim, a primeira desembargadora negra. O anúncio será feito nesta segunda-feira, e, na lista de candidatos, o nome com maiores chances de promoção é o da juíza Ivone Ferreira Caetano, titular da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso. O Rio tem mulheres desembargadoras e tem desembargadores negros. Não há no cargo, porém, alguém que reúna as duas qualificações. Se a promoção se confirmar, Ivone, de 69 anos, será a segunda do Brasil nessa condição.
A juíza lamenta essa realidade. “É uma vergonha isso ser raridade em pleno Século XXI”, diz.
Tida como durona, Ivone é conhecida por decisões controvertidas como a internação compulsória de adolescentes dependentes de drogas e por obrigar adolescentes grávidas a se submeterem a tratamento médico. Quando fala de preconceito, não usa meias palavras. “Essa decantada democracia racial não existe”, afirma.
A possível promoção a desembargadora só será confirmada no anúncio oficial, já que há outros candidatos. Mas, pelo critério de obter 13 votos em três eleições, Ivone é quem tem a melhor posição. Mais uma vez, seria pioneira no estado, já que há 20 anos foi a primeira mulher negra a passar em um concurso para a magistratura fluminense.
Desde então, ela avalia, o preconceito se manteve. Reconhece, no entanto, que houve avanços. “O negro está começando a ter autoestima e a gostar de si próprio”, acredita. “Está crescendo a consciência do meu povo”.
Ivone diz ter sido vítima de racismo várias vezes. Explica como enfrentou essas situações, fazendo analogia com a atitude do lateral-direito Daniel Alves em resposta a torcedores preconceituosos. “Só não digo que como a banana e limpo as mãos no calção porque minha área não é o futebol”, ironiza. “Não dou bola para o preconceito e sigo em frente fazendo o que tem que ser feito”. Além da segregação sofrida por causa da cor da pele, Ivone enfrenta os preconceitos contra a condição feminina. “Ser negra e mulher é muito difícil no Brasil”.
Caso o Tribunal de Justiça confirme a escolha, ela se considera à altura da tarefa. “Pode haver quem trabalhe tanto quanto, mas não mais que eu”. Filha de uma lavadeira que foi abandonada pelo marido e conseguiu criar 11 filhos, ela acredita que a possível promoção seria um avanço contra o racismo: “Isso sinaliza para os demais negros que sim, eles podem”
Em todo o Brasil, houve apenas um caso, na Bahia
?Somente em 1998, o TJ-RJ teve o seu primeiro desembargador negro: Gilberto Fernandes. Mesmo hoje, são poucos. “Não se contam nos dedos de duas mãos”, diz a juíza Ivone Caetano. Em todo o país, há apenas uma mulher negra que chegou ao cargo de desembargadora. Filha de vaqueiro com uma costureira, Luizlinda Valois Santos foi nomeada na Bahia, em 2011.
Uma das poucas pesquisas sobre o perfil da magistratura brasileira, feita pelo pesquisador Romeu Ferreira Emygdio, do IBGE, demonstra que o Poder Judiciário de Brasil reflete a segregação étnica que se repete em várias instituições. O estudo, com dados de 1980 a 2000, revela que 85,9%, dos juízes togados declaram-se de cor branca, havendo 14,1% não brancos. Apesar dos 14 anos de diferença, o pesquisador alerta que não há grandes diferenças dos últimos 400 anos de história do Brasil.
Muitas críticas por defender a internação compulsória
Para a juíza Ivone Caetano, o trabalho à frente da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso é a tarefa mais pesada no Judiciário. “Com o crack, os problemas nessa área têm crescido bastante”. Ela foi uma das primeiras autoridades a determinar internação compulsória para adolescentes dependentes de drogas que vivem na rua. Desde 2011, enfrenta críticas por isso.
Alguns argumentam que essa iniciativa fere o direito de ir e vir. “Aqueles que criticam não oferecem soluções para essa grave questão. Quem tem boa condição financeira pode internar o filho, enviar ao exterior para tratamento. Já os pobres podem ficar na rua, entregues ao tráfico?”
Ivone ressalva que é preciso garantir atendimento médico de qualidade. “Os adolescentes não devem ser jogados em um depósito de gente”.
Outro debate em que frequentemente é chamada a opinar: a discussão sobre redução da maioridade penal como medida para combater a criminalidade. “Por enquanto, eu ainda sou contra. Na minha opinião, a esses menores nada foi dado. Nem saúde, nem educação, nem ambiente digno de moradia. Então, pouco lhes pode ser cobrado”.
Sua atuação rendeu admiradores, mas também fez surgir adversários: teve contra si 19 representações (tentativas de punição). Nenhuma delas foi aceita. “Não sei se essas iniciativas foram por discordâncias legais ou apenas pelo objetivo de martelar a cabeça de um prego saliente (risos). Nunca poderão dizer que eu seja desonesta ou aja fora da legalidade”. Ela não se abala e mantém o foco. “Busco fazer o melhor pela criança e adolescente”.