Por thiago.antunes

Rio - A vizinhança em nada inspira brincadeira. Muito pelo contrário. Na praça ficam a Cruz Vermelha Brasileira e o Instituto Nacional de Câncer. A 5ª DP está a dois quarteirões. E bem em frente fica o austero Colégio Corcovado, onde os alunos aprendem a língua alemã. Mas no primeiro andar do sobrado no número 67 da Rua Carlos de Carvalho, a alegria ilumina os dias. Se a porta estiver fechada, não se acanhe: é só tocar a buzina pendurada na grade e entrar no ‘circo’ do Martin.

Uma prancha de surfe serve de balcão, coberta de pratos de equilibrista. Nas prateleiras, malabares e claves coloridos, pernas de pau, monociclos, sapatos de palhaço. Não resta dúvida: estamos no picadeiro. E se alguém perguntar a Martin Torchiana por que ele decidiu levar a vida na brincadeira, a resposta vem do berço. “Nasci em uma loja de brinquedos fundada por meu avô. Isso talvez explique alguma coisa”, diz o argentino da cidade de Zárate, província de Buenos Aires, de 37 anos e olhos alegres de menino.

Alguma coisa, explica sim. Mas tem mais. Com o avô, Martin aprendeu que o cliente sempre tinha que ver a prateleira cheia e sair feliz da loja. “Em tempos de crise, ele vendia papel higiênico. E o cliente saía satisfeito”. Essa capacidade de improvisação, comum no universo circense, Martin guardou como cartilha. Foi assim que começou a cismar, lá pelos 20 anos, de fazer da vida um espetáculo. Distinto público, lá foi ele. Parou de estudar Economia e Marketing na universidade e aprontou as malas.

A vizinhança em nada inspira brincadeira. Mas no primeiro andar do sobrado no número 67 da Rua Carlos de Carvalho%2C a alegria ilumina os diasAlessandro Costa / Agência O Dia

Indiretamente, o pai de Martin ajudou na escolha do destino. Nas férias, ele botava a família no carro e cruzava a fronteira. Depois de várias viagens ao Uruguai, o Brasil entrou no roteiro. “Conheci todas as praias do Sul e logo descobri algo que me deu a convicção de que vir para cá era o melhor caminho: o povo aqui leva a vida muito mais na brincadeira.”

Quem há de negar? Um casal entra na loja em busca de adereços de palhaço. A menina experimenta um nariz vermelho. Martin dá umas dicas, pega uns chapéus engraçados, e o casal se ri. Quando não está ali no balcão, ele se concentra na oficina nos fundos da loja. Uma herança do pai, que tinha seu ateliê nos fundos de casa.

“Aprendi com ele a fazer muita coisa com madeira e passei a confeccionar os instrumentos usados pelos artistas de circo”. Foi com aparelhos que ele mesmo construiu que Martin saiu da Argentina disposto a levar seu show de circo, onde fazia as vezes de palhaço e malabarista, a todas as praias do Brasil. Martin aprendeu o ofício nas ruas de Buenos Aires, observando os artistas que se apresentavam na Recoleta. “A linguagem do circo é universal, todo mundo entende. Fiz cursos na Argentina, mas aprendi demais com os números de rua.”

Talvez Martin não tenha se tocado de olhar o mapa do Brasil antes de iniciar seu ambicioso projeto, mas o fato é que não chegou sequer à metade do litoral. E foi parar em Minas, que nem mar tem, onde conheceu a mãe de seu único filho, em 1997. Juan hoje tem 15 anos, curte o trabalho do pai, mas gosta mesmo é de tocar guitarra. “Músico também pode trabalhar no circo”, Martin ri, confiando no seu DNA.

Martin ficaria por Minas não fosse alguém lhe dizer que no Rio havia uma Escola Nacional de Circo. Ele veio conhecer, acabou virando aluno, e daqui não saiu mais. Aperfeiçoou seus dotes de malabarista e passou a abastecer os artistas com os instrumentos de sua oficina. Hoje ele divide seu tempo entre as apresentações, a loja e a venda dos instrumentos, feitos a partir de um material que o pai usava lá na oficina nos fundos de casa: cabos de vassoura.

O casal dos adereços de palhaço paga a conta e vai embora feliz. Martin mais uma vez confirma uma tese de seu pai: os brinquedos não mudam, o que mudam são as crianças. Até os alunos um tanto sérios demais do Colégio Corcovado arriscam uma passada na loja de vez em quando. Nem que seja para sorrir. Ainda bem.

Poder-se-ia dizer que Martin leva a vida na corda bamba. Mas não seria justo. Na sofreguidão de nossas vidas atribuladas, corda bamba virou sinônimo de sufoco, apreensão, agonia. Digamos que Martin é um palhaço que aprendeu a se equilibrar e acha graça dos que acham que ele pode cair. Como se o espetáculo sempre tivesse que acabar em risada, mesmo que o cliente leve só um papel higiênico.

Se a gente tivesse mais alguns Martins pelo caminho, a vida seria mais leve. E peço licença ao meu parceiro Moacyr Luz e aos gênios Aldir Blanc e Paulo César Pinheiro para roubar um verso de ‘Saudades da Guanabara’ e dar de presente a quem ainda aposta na alegria. Eu sei que o meu peito é uma lona armada. Nostalgia não paga entrada. Circo vive é de ilusão.

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