Rio - Apesar do olhar ingênuo, feições frágeis e voz fina, o relato, ainda na caçamba de uma viatura policial, impressiona. Do topo de seu 1,50m de altura, uma criança de 12 anos, apreendida em junho durante operação em São Gonçalo, detalha, como em uma inocente brincadeira infantil, suas façanhas no mundo do tráfico. E diz já ter atirado em um policial. O vídeo, gravado por PMs, ‘humaniza’ o que a frieza dos números sentencia: em seis anos, a quantidade de apreensões de menores no estado quadruplicou. Na terça-feira, O DIA publicou com exclusividade que traficantes recrutam menores até para participarem de ataques a Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs).
O levantamento do Instituto de Segurança Pública (ISP) atrelado aos acontecimentos da semana no Complexo do Alemão reacende a discussão sobre a redução da maioridade penal. De 2008, ano do início do processo de pacificação, a 2013, o número de jovens menores de 18 anos flagrados cometendo delitos subiu 300% — 1.802 para 7.222.
E 2014 vem batendo recordes negativos: no primeiro trimestre já foram registrados 88 casos a mais que em todo o ano de 2008. Já nos cinco primeiros meses, comparados ao mesmo período do ano passado, foram 202 casos a mais — 3.073 contra 2.871, um crescimento de 7%.
A história de X. retrata a realidade no recrutamento, cada vez mais cedo e em maior quantidade, de ‘soldados’ para o mundo das drogas. Apreendido dia 6 de junho com um revólver, entorpecentes e um colete, o garoto, viciado em maconha, contou aos policiais que virou ‘vapor’ após convite do chefão do Morro da Piranha, no Mutuapira, São Gonçalo, e que passou a andar armado para atirar em policiais militares.
“Foi só uma vez, só. Foi na primeira vez. Dois tiros”, responde o menino às perguntas de um policial, acrescentando que os disparos foram na direção dos soldados. Em menos de um ano na boca de fumo — na qual ganhava R$ 50 por carga vendida — foi a terceira vez que ele foi pego. O dinheiro, segundo ele, era gasto em comida e roupas.
Os balanços parciais de áreas que abrangem favelas pacificadas também não são animadores. Na Cidade de Deus, foram feitas, ano passado, 27 apreensões. Só de janeiro a maio deste ano já são 51 — aumento de 88,8%. Nas áreas da 22ª DP (Penha) e 45ª DP (Alemão), que incluem os complexos da Penha e do Alemão, e da 19ª DP (Tijuca), que abrange Borel, Salgueiro e Formiga, apesar de menores nos cinco primeiros meses, os números deste ano tendem a superar os de 2013. São 71 contra 64 atuais no Alemão e 22 contra 12 atuais na Tijuca.
“Bandidos já sabem que menor baleado e ficha limpa vira inocente na mídia e para opinião pública. Não adianta relatarmos que encontramos armas, drogas. A maioria acha que é tudo forjado. E eles são liberados em pouco tempo. Por isso, o recrutamento é cada vez mais cedo”, contou policial da UPP Nova Brasília, baleado por menor. “Antes de 15 anos eles ficam com pistolas e revólveres em lajes. Vão acompanhando cada passo dos policiais. Acima de 15, pelo menos no Alemão, eles já ficam, à noite, de fuzis nos becos”, disse.
Possibilidade de mudança na legislação divide posturas sobre o tema
Foi a experiência de ficar cinco anos e quatro meses como titular da Vara da Infância e Juventude Região Metropolitana de Recife (PE) que fez o juiz Abner Apolinário mudar de opinião e bater o martelo: “Sou sim, agora, a favor da redução da maioridade penal,em alguns casos”. No baú de história que ele carrega sobre seu contato com menores em conflito com a lei, um caso especial chamou a atenção. Numa audiência, ouviu de um menor: ‘Eu tinha que ter matado ontem mesmo, por que um dia depois eu completava 18 anos’. Para ele, há um uso ‘consciente’ da legislação mais branda por parte de muitos adolescentes e que, em situações de crimes dolosos contra vida, não se pode ‘deixar este infrator solto como uma máquina mortífera’.
“Eles regozijam na cara da gente essa condição de menor”, afirmou ele, que não levaria em consideração a redução da idade penal em casos de roubo e furto. Na linha contrária, está o sociólogo Paulo Baía, que é totalmente contra a redução. “Não acredito que o ato de aprisionar um jovem mais cedo leve ao processo de ressocialização com êxito”, afirmou ele.
O jurista Luis Flávio Gomes também segue a mesma linha de pensamento contrária a uma mudança em relação a idade, com a ressalva de que é a favor do aumento do tempo da pena para casos de homicídios, latrocínio e estupro. “Menor de 18 anos tem que ficar dentro da escola, em período integral. Esta é a solução. Se reduzir a idade penal para 15 anos, os bandidos vão começar a recrutar meninos de 14”.
Não à redução da maioridade penal - Alexandre Azevedo de Jesus, diretor-geral do Novo Degase
“Antes, é importante saber para que se pretende a redução da maioridade penal. Porque se o objetivo é a redução da violência e do cometimento de atos infracionais, é importante salientar que não há uma correlação entre a idade e o cometimento de delitos e é mito afirmar que adolescentes cometem mais crimes que os adultos. Pelo contrário, em números absolutos e proporcionais há muito mais casos de violência e crimes cometidos por maiores de 18 anos do que por menores. Estudos no campo da Criminologia e das Ciências Sociais têm demonstrado que não há relação direta de causalidade entre a adoção de soluções punitivas e a diminuição dos índices de violência.
A partir dos 12 anos, qualquer adolescente é responsabilizado pelo ato cometido contra a lei. Essa responsabilização, prevista no ECA, têm o objetivo de ajudá-lo a recomeçar e a prepará-lo para uma vida adulta. Por isso, não devemos confundir impunidade com imputabilidade. Outra informação importante é de que menos de 10% dos adolescentes apreendidos no Rio de Janeiro, em 2013, cometeram atos infracionais análogos a crimes de homicídios e violência contra outras pessoas.
Isso significa que a redução da maioridade penal pura e simples empurraria para o sistema carcerário um universo de 90% de adolescentes que hoje passam por medidas socioeducativas muito mais eficazes, do ponto de vista da intervenção técnica e construção de planos individuais de atendimento, do que o ofertado no sistema penitenciário.
A imposição de medidas socioeducativas, e não das penas criminais, relaciona-se justamente com a finalidade pedagógica que o sistema deve alcançar, e decorre do reconhecimento da condição peculiar de desenvolvimento na qual se encontra o adolescente. Reduzir a maioridade penal é tratar o efeito e não a causa.
Uma alternativa necessária é ampliar os estudos sobre o aumento do tempo da medida socioeducativa de internação, que hoje tem como limite 3 anos. É preciso discutir variáveis que levem em consideração a idade e a natureza do ato infracional, não sendo uma mudança que afete todo o sistema, mas a parcela de adolescentes que cometem atos com violência ou grave ameaça a pessoa.”
O que pensam os candidatos
A Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente abriu inquérito na última semana para apurar a atuação de menores na linha de frente do tráfico, após conflitos no Complexo do Alemão. A investigação e os dados do ISP conseguidos com exclusividade pelo DIA reacendem a discussão da redução da maioridade penal.
O DIA quis saber dos candidatos ao governo do estado e à presidência o que pensam sobre o polêmico assunto. Mesmo dizendo-se contra a redução, Aécio Neves (PSDB) e Eduardo Campos (PSB) defenderam maiores punições para os infratores. Dilma Rousseff (PT) não quis se manifestar. Dos candidatos a governador, Lindberg Farias (PT) argumentou que melhorar a educação seria a alternativa. Já o governador Luiz Fernando Pezão quer mais tempo de internação para jovens que cometam atos análogos a crime hediondo. Para Marcelo Crivella (PRB), o Estatuto da Criança e do Adolescente já é eficiente. O ex-governador do Rio Anthony Garotinho (PR) defende a redução da maioridade penal em crimes hediondos.
À Presidência da República
- Aécio Neves
O senador Aécio Neves afirmou que é contra a redução da maioridade penal como uma solução para o elevado número de apreensão de menores. Ele afirma que é a favor da proteção das crianças e adolescentes e que apresentou um projeto de lei endurecendo a pena para quem utiliza menores na prática de crimes.
Porém, disse que defende uma proposta que permite que jovens de 16 a 18 anos, envolvidos em crimes violentos e reincidentes, sejam avaliados pelo Poder Judiciário e possam ser condenados a mais de três anos de reclusão — o atual limite previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. O projeto, apresentado pelo senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB), seu candidato a vice, e inspirado em uma proposta do governador Geraldo Alckmin (PSDB), autoriza que, em crimes gravíssimos cometidos por infratores reincidentes, a punição seja maior. Segundo a assessoria de sua campanha, esses casos representam menos de 1% dos delitos cometidos por menores.
- Dilma Rousseff
A assessoria da campanha da presidenta preferiu não emitir parecer da candidata sobre o tema e afirmou que, no momento, a chapa está dedicada ao debate com a sociedade das linhas gerais do programa de governo apresentado ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Porém, em sua história de lutas, o PT não considera a redução da maioridade uma resposta para o problema dos jovens infratores.
Em fevereiro deste ano, a bancada do PT no Senado Federal votou contra a proposta de Aloysio Nunes que permite ao menor de 18 anos envolvido em crime hediondo ser processado como adulto. Em nota publicada no site do partido sobre o assunto, os petistas argumentaram que é essencial que o Estatuto da Criança e do Adolescente seja aplicado em sua plenitude e que o Estado efetivamente esteja preparado para a aplicação de medidas socioeducativas que recuperem os adolescentes.
- Eduardo Campos
O ex-governador de Pernambuco afirmou que é um mito as pessoas acharem que diminuir a maioridade penal vai resolver o problema da criminalidade. Além disso, lembrou que há um entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) de que não se pode reduzir a idade penal sem uma nova Assembleia Nacional Constituinte, já que a Constituição Federal teria que ser alterada.
Ao Governo do Rio de Janeiro
- Anthony Garotinho
O ex-governador do Rio afirmou que defende a redução da maioridade penal para quem comete crimes hediondos. Para ele, a classificação não pode ser pela idade, mas pelo crime. “Minha opinião é que quem comete crime hediondo, com 14, 15, ou 18 anos, deve ser tratado da mesma forma pela lei. Este é um passo que o Brasil terá que dar, e acho que já passou da hora”, critica Garotinho.
No entanto, ele disse que é preciso tocar na raiz do problema, ou seja, ‘promover políticas públicas que defendam a família e esse menor de idade para afastá-lo da criminalidade’. “Esse problema tem que ser encarado em suas origens: primeiro, falha o governo, falha depois a família, falha a escola e chegamos a esse menor que comente crimes. Temos que interferir nesse processo todo, não apenas na questão da maioridade penal”, declarou ao DIA.
- Lindberg Farias
O senador afirmou que parte dos 1,3 milhão de jovens no Rio de Janeiro, entre 15 e 19 anos, está sem perspectiva de vida. Segundo ele, são 210 mil jovens (16,5%) que não estudam nem trabalham, e que podem ser atraídos para as facções criminosas do tráfico de drogas. “Eles vão para o crime não porque ainda não atingiram a maioridade penal, mas sim porque lá eles têm a possibilidade de obter renda e ascensão social, segundo valores específicos. O problema é social e sua solução também deve ser social. Não devemos desistir da nossa juventude. Devemos disputá-la com os traficantes”, disse.
Lindberg apresentou como proposta a criação do ‘Ciep do Século 21’, com educação integral, alta tecnologia, cursos técnicos e formação profissional, além de atividades culturais, para que eles se preparem cada vez melhor. “Será com mais educação, mais investigação criminal e policiamento que haverá a redução da criminalidade juvenil. Prender a juventude negra e pobre aos 16 ou 17 anos será colocá-la mais cedo na escola do crime, que é o sistema penitenciário”, criticou Lindberg.
- Luiz Fernando Pezão
O governador do Rio e candidato à reeleição preferiu não se posicionar sobre o assunto. Através de nota, enviada pela assessoria de sua campanha, Pezão apenas afirmou que ‘o Congresso Nacional e a sociedade têm de discutir esse tema mais profundamente’. Porém, defendeu que o jovem em conflito com a lei que cometer um ato análogo a crime hediondo fique mais tempo internado para recuperação.
- Marcelo Crivella
O senador afirmou que é contra a redução da maioridade penal já que países que a adotaram voltaram atrás, uma vez que a medida não reduziu a violência. “O índice de reincidência nas nossas prisões é de 70%. Já no sistema socioeducativo, é de 20%, o que indica que 80% dos menores infratores são recuperados. Isso mostra que o Estatuto da Criança e do Adolescente é eficiente", argumentou.
Colaboraram Constança Rezende e Christina Nascimento