Rio - Aos 104 anos, Eva Maria Oliveira, 12 filhos, já perdeu as contas dos netos, bisnetos e tataranetos, mas não esquece o passado de luta de seus ancestrais pela posse das terras que ocupam há mais de um século. Neta de escravos, a moradora mais antiga e ilustre do Quilombo da Rasa, na porta de entrada de Armação dos Búzios, lembra da região quando ainda era apenas uma criança. “Não tinha luz, água encanada, nem nada. Pra se divertir, a gente brincava de ciranda, fazia fogueira e dançava jongo (dança brasileira de origem africana)”, conta.
Apesar de as atividades serem mais cansativas e braçais, Dona Eva tem saudade da época em que era mais jovem. “Eu plantava batata, cana e mandioca. A pesca era feita em canoas, não nesses barcos mais evoluídos”, diz ela, que exibe as mãos e pés calejados pela lida na roça. “Para ter uma ideia, meu pai morava em Cabo Frio e eu ia visitá-lo a pé daqui de Búzios”, acrescenta a lenda viva do quilombo, sem a mínima ideia dos 20 quilômetros que separam as duas cidades. Ativa, Dona Eva não para. “Ainda continuo fazendo minhas coisas. Lavo roupa todos os dias. Mas agora é tudo mais fácil.”
De fato. Hoje, a luz e a água chegaram. Existe até TV a cabo e internet. Mas a vida simples na comunidade não parece ter mudado muito. Canoas ainda podem ser vistas no amplo quintal coletivo compartilhado pelas famílias, onde também se criam galinhas e outros pequenos animais. As casas de pau-a-pique deram lugar a residências de alvenaria, porém, humildes.
A pesca de subsistência ainda é a principal atividade dos quilombolas. “Mesmo assim, distribuímos 250 cestas básicas por mês para nossos descendentes”, afirma Leonardo da Costa, neto de Dona Eva e presidente da Associação Quilombola da Rasa. Ele explica que mais de 800 famílias vivem no quilombo e destaca a necessidade de modernização. A sede provisória da associação já possui um telecentro com 11 computadores. “Estamos nos atualizando. Devido à necessidade de mão de obra qualificada em Macaé, fizemos uma parceria com a Shell e criamos um curso de solda para 37 jovens descendentes de quilombolas. Vamos prepará-los para o mercado de trabalho”, ressaltou.
Os habitantes do local se orgulham de sua história. No século 18, os portugueses traficavam escravos africanos, que desembarcavam na Rasa e eram transportados para o Rio. Após a assinatura da Lei Áurea, escravos fugidos e ex-escravos libertos estabeleceram-se na região, formando o quilombo da Rasa. A área foi reconhecida em 2005 pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e pela Fundação Palmares.
Apenas 14 títulos foram emitidos
Dona Eva é exemplo vivo da histórica luta dos quilombolas pela posse das terras. Apenas 14 títulos foram dados desde 2005. “São 12 áreas aqui em Búzios. Viajo pelo Brasil todo para conversar com as autoridades e resolvermos logo a regulamentação de nossas terras. Temos que conseguir a documentação das propriedades o quanto antes. Senão, outras pessoas podem invadir os terrenos”, disse Carivaldina da Costa, 73, filha de Dona Eva e presidente de honra da Associação dos Quilombolas.
Segundo Flávio Gomes, historiador e professor da UFRJ, desde o século 18 “há indicações de grandes quilombos nas regiões de Campos de Goitacazes, depois no Vale do Paraíba principalmente no século 19, além de inúmeros na Região dos Lagos, como Cabo Frio, Búzios, São Pedro da Aldeia e Arraial do Cabo”.
Mangue de Pedra está sob ameaça
Fonte de subsistência dos quilombolas, o Mangue de Pedra, um dos três existentes no mundo (os outros ficam no Recife e no Japão), está sob ameaça. Segundo o presidente da Associação dos Quilombolas, Leonardo Costa, empresários querem construir um condomínio no local, com 200 unidades. A intervenção afetaria o ecossistema do lugar, já que o fornecimento de água doce para a vegetação seria alterado. A Prefeitura de Búzios garante que o condomínio não será erguido.
O nome Mangue de Pedra vem da presença de pedras e areia na beira do mar, principal base para as raízes da vegetação de mangue que se desenvolvem no local. Sua singularidade se deve à água de chuva que se infiltra no solo e percorre o morro por causa da força da gravidade e chega na areia da praia. Assim, o morro com sua cobertura vegetal funciona como um reservatório de água doce que, ao ser liberada, mistura-se com a água salgada do mar e produz água salobra.
Reportagem de Eduardo Ferreira
