Rio - Jandira Magdalena dos Santos Cruz, 27 anos, virou vítima de uma estatística de números invisíveis. A jovem, que está desaparecida desde o fim de agosto, quando deu entrada numa clínica de aborto, é a representação de uma realidade que o país sabe que existe, mas não vê: mulheres que interrompem a gravidez de forma clandestina. É um silêncio que mata. Quem faz não conta por medo de ser presa. Quem sabe, como médicos que fazem curetagens em pacientes que chegam com hemorragias, não podem notificar os casos, porque seria quebra de sigilo profissional, segundo o Conselho Regional de Medicina (Cremerj).
Nesse cenário de criminalização, os dados são superficiais. O Ministério da Saúde informou que, no ano passado, 1. 520 procedimentos de aborto legal — quando a gravidez significa risco à mãe ou é resultante de estupro — foram realizados no Brasil. Em 2012, foram 1.613 e, em 2011, 1.495. Já o número de óbitos de mulheres atribuído ao aborto caiu 83,7% entre 1990 e 2012. Agora, quantas interrupções clandestinas ocorreram no país é um mistério.
Um dos receios das mulheres que se submetem a um aborto, e que pode resultar em sequelas graves, como a infertilidade e até a morte, é procurar unidades para fazer exames depois. “O médico não pode contar a ninguém se a mulher revelar pra ele que fez um aborto clandestino. Ele coloca no prontuário a informação, assim como o pedido de exames, medicamentos, mas a divulgação só pode ocorrer se a paciente autorizar por escrito”, revela o presidente do Cremerj, Sidnei Ferreira. O órgão defende uma discussão séria por parte dos governantes sobre o assunto. “A questão é que não pode mais morrer mulher, nem ficar com sequelas, porque o aborto é um crime. O governo tem que entender que é problema de saúde pública”, afirmou Ferreira.
Foi o medo de ser denunciada que impediu que a ativista de movimento feminista Bastardxs Sara Winter, 22 anos, não procurasse ajuda médica. Há três meses, ela tomou remédio para interromper uma gravidez. Sem ter ideia de que precisaria fazer uma curetagem, ela ficou cerca de um mês com partes do feto no útero.
“Descobri a gravidez no meio de uma separação. Não queria que meu marido voltasse por causa de um filho. Uma amiga me arrumou Cytotec e eu tomei. Fiquei três semanas sangrando, com cólicas horríveis e com uma febre altíssima. Cheguei a usar fralda geriátrica para dormir. Quando resolvi ir a uma clínica, já era tarde. Estava com uma infecção grave nas trompas uterinas. O médico disse que é praticamente impossível ter um filho de novo”.
VIVA VOZ
"Sou a favor da liberação", Mariana, 41 anos (*), publicitária
?“Engravidei aos 24 anos, de um homem casado. Era apaixonada por ele, mas sabia que a relação não passava de sexo. Quando descobri, fiquei apavorada. Era estagiária, já tinha perdido minha mãe e faltavam dois períodos para concluir a faculdade. Consegui, no mercado negro, quatro comprimidos de Cytotec. Coloquei dois na vagina e tomei os outros. Já passei dos 40 e não sou mãe. Hoje, não faria o aborto, mas sou a favor da liberação. A Igreja não entende, as pessoas não compreendem. Pensam que é fácil tirar uma vida de dentro de você. Dói, e muito. Portanto, não julguem”.
"Nunca vou deixar de sentir culpa", Ana Paula, 36 anos (*), médica
“Tinha 16 anos quando me descobri grávida do meu primeiro namorado. Tinha certeza que ele acharia o máximo. Nós iríamos ter um bebê, ficaríamos juntos e felizes para sempre. Mas não demorou para eu me deparar com a realidade: ele não queria casar, muito menos ter um filho. Procurei meu pai, contei tudo e ele me perguntou: “quer tirar o bebê?”. Falei que sim. Achamos uma clínica clandestina e fiz o aborto. Saí arrependida e dilacerada. Não sei dizer se deveria não ter feito. Não vou saber, mas nunca vou deixar de me sentir culpada.”
?"Faria tudo de novo, me arriscaria", Ana Eufrázio, 40 anos, química
"Fui estuprada pela primeira vez aos 15. Ainda sentia culpa e medo quando, pouco mais de três anos depois, fui estuprada de novo. Se o primeiro havia me tirado quase todos os sonhos, o segundo me tirou a vontade viver, principalmente quando descobri que estava grávida de um monstro. Quis morrer, até ingeri uma quantidade enorme de remédios na esperança de ter uma morte tranquila, mas não morri. E, no meu útero, continuava a crescer um feto que carregava metade do DNA do meu agressor. Tinha pesadelos com essa gravidez, sonhava que o feto que carregava era um monstro que iria me matar consumindo minhas vísceras. Não cogitava sequer a possibilidade de levar aquela gravidez adiante, preferia morrer a ter o filho de um estuprador.
Acabei usando quatro comprimidos abortivos falsos na primeira tentativa. Procurei por clínicas clandestinas, mas o preço era alto e eu não tinha como pagar. Na segunda tentativa, me arrisquei numa periferia perigosa para comprar outros comprimidos. Esses sim, foram efetivos. Senti uma bola de sangue ser expulsa, depois disso as dores diminuíram e eu pude relaxar um pouco. Faria tudo de novo, me arriscaria, faria o que tivesse de ser feito, mas não daria a luz a um filho de estuprador."