Rio - Moradores do Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio, relataram denúncias graves contra militares da Força de Pacificação, que ocupam o conjunto de favelas desde abril deste ano, na tarde desta quarta-feira. Em reunião no Centro de Artes da Maré, moradores e representantes de associações relataram torturas — que incluem passagens pelo Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR) — abusos, abordagens hostis, invasão de residências sem mandado, xingamentos e agressões.
Um dos relatos é do auxiliar de jardineiro Adalberto Monteiro, 29 anos, que mora na Favela Bento Ribeiro Dantas. Segundo Adalberto, soldados em um jipe o abordaram no dia 9 de julho com truculência. "Eu estava com um amigo. Eles chegaram chutando a gente e abrindo nossas pernas. Questionei: 'Isso é jeito de abordar?'. Na mesma hora jogaram spray de pimenta no meu rosto e deram um tiro de bala de borracha no meu amigo. Me levaram para um contâiner dentro do CPOR, onde passei a noite. Me induziram a assinar uma folha indicando que fui preso por desacato. Depois, fui levado para a 21ª DP (Bonsucesso) e para Bangu 10, onde fiquei dois dias preso. Só fui solto porque amigos e parentes pagaram uma fiança de R$ 2 mil", disse.
Um caso mais recente é do entregador de lanches, Roberto da Nóbrega, 31 anos, e seu irmão Wagner da Nóbrega., 23, que moram na Vila do Pinheiro. No dia 12 de outurbro, os dois estavam em uma moto e foram abordados por soldados após o veículo parar. "Eles começaram perguntando da moto e falaram que iam passar por cima. Um soldado me disse 'cala boca, seu negão'. Além do abuso sofri racismo", contou. "Meu irmão, mesmo por conta própria quis ir para a delegacia, mas foi algemado. Nos levaram para o CPOR, onde prestei depoimento, fiz a queixa de racismo e fui liberado. Eles trancaram meu irmão num conainer e jogaram gás de pimenta. Ele foi levado para a 21ª DP, depois para Bangu 10 e Bangu 3, onde ficou alguns dias até pagarmos a fiança". Na delegacia, Wagner teria sido chamado de lixo pelos militares. O caso, segundo Roberto., foi encaminhado para o Ministério Público.
Procurada pelo DIA, a Força de Pacificação da Maré informou que vai investigar as denúncias junto à 21ª DP e à Delegacia de Polícia Judiciária Militar (DPJM). O encontro de 16 representantes das associações de moradores da Maré foi organizado pelo Observatório de Favelas e pela ONG Redes da Maré. As lideranças pediram um encontro com o secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, mas ainda não foram atendidos.
'Essa ideia de pacificação é mentirosa'
"Esse encontro foi para chamar a atenção para as abordagens feitas na Maré, que estão violando o direito dos moradores. De março deste ano até agora, tivemos 12 mortes no interior da Maré e 16 no entorno. Desde que o Exército entrou aqui só vimos poder bélico. Esta ideia de pacificação é mentirosa. Não há uma inteligência. Só queremos garantir a segurança e direitos dos moradores quando a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) chegar aqui. Eles estão fazendo as mesmas abordagens da PM", disse a presidente da Redes da Maré Eliane Souza Silva. Ainda segundo ela, são investidos diariamente R$ 1,2 milhão por dia para manter o Exército no conjunto de favelas. "Esse dinheiro deveria ser investido na segurança pública", finalizou.
Pedro Francisco, representante do Conjunto Esperança, revelou que projetos estão parados por conta das intervenções militares. "Nós perdemos a paz e a tranqulidade desde que o Exército entrou na Maré. Nós tivemos direitos violados, pois os militares arrombam portões e cadeados. Eu tenho um projeto especial para idosos que está parado. Eles fazem disparos a qualquer hora do dia e ostentam o poder bélico", disse.
O presidente da associação de moradores da Vila do João, Marco Antônio, corrobou a informação. "Há cinco meses os miliares invadem casas dos moradores sem mandado. Na tentativa de impedir que entrassem na casa de um amigo na Rua 17, me ameaçaram de levar pra delegacia pelo crime de associação ao tráfico. Qualquer diálogo que tentamos exercer não dá em nada, pois somos ameaçados", relatou.
"Muitas mães não mandam filhos para as escolas por causa do medo. Eles desfilam com tanques de guerra em frente aos colégios. Até garis da Comlurb já foram ameaçados por baterem boca com homens do Exército", contou Claudia Lucia Silva Santana, presidente da associação Parque Ecológico, também na Vila do Pinheiro.
Jonata de Azevedo, representante da associação da Vila Pinheiro denunciou um caso que acabou em morte. "Soldados não sabem controlar uma situação, são despreparados. Recentemente teve uma briga e moradores atiraram pedras. Por falta de preparo, eles atiraram contra os moradores. Um foi atingido na perna e está hospitalizado. Outro foi atingido na barriga e morreu. O nome da vítima é Paulo Ricardo Rodrigues Lima. Ele era trabalhador, montador de estrutura metálica. Isso ocorreu há duas semanas, na Via 1", disse Jonata, mostrando a carteira de trabalho de Paulo.
Vilmar Gomes, presidente da associação do Parque Rubens Vaz, relatou ações arbitrárias dos militares. "Outro dia, após uma confusão, eles atiraram bombas de efeito moral. Isso foi há 21 dias. Uma grávida passou mal e eles alegaram que estavam perseguindo suspeitos. Chamaram os moradores de vermes. Que pacificação é essa, que chega dando tiros para o alto?", questionou Gomes.
Ainda segundo moradores, os militares cercaram com arames a ciclovia da Vila do Pinheiro, tirando o único lazer local. Sacos de areia também foram colocados entre a escola municipal Paulo Freire e a creche Albano Reis. Por causa dos tanques desfilando pelas ruas e assustando moradores professores, alunos e pais, muitas escolas estão suspendendo aulas, entre elas estão a Escola Municipal José de Castro, Quarto Centenário, Gustavo Capanema e Paulo Freire. "Hoje de manha não teve aula na Teotonio Vilela. Isso dá um clima de guerra constante pra gente que passa aqui", disse uma moradora que não quis se identificar.
A cultura local também está ameaçada. Os eventos de funk e forró não estão sendo realizados por ordens dos homens da Força de Pacificação. Há ainda a imposição de toque de recolher às 20h, horário em que os comerciantes locais também começam a fechar as portas. O filho de 17 anos da copeira Angélica Moreira de Jesus, 35, do Conjunto Esperança, foi abordado e agredido por soldados há dois meses. "Ele foi confundido com um traficante. Eles (soldados) chegaram falando 'é você mesmo' e bateram muito nele. O rosto ficou inchado e a orelha foi rasgado. Um raio-x feito na UPA mostrou uma lesão no maxilar. Meu grito hoje aqui é de desespero", relatou Angélica.
"Dias depois ele foi chamado de 'neguinho'. Por sorte o meu marido conseguiu tirá-lo da confusão. Meu filho ainda perdeu dois empregos, pois os militares ficavam passando na porta do seu emprego. Os soldados fotografam as pessoas no CPOR e na rua para marcar e perseguir. Apesar da violência, meu filho sonha em entrar pro Exército e fazer justamente o contrário", disse.
Nota da Força de Pacificação
No dia 9 de julho de 2014, foi realizada a prisão de uma pessoa por crime de desacato previsto no artigo nº 299 do Código Penal Militar (CPM), que não corresponde ao nome apresentado pela reportagem, Adalberto Monteiro.
No dia 12 de outubro de 2014, foi realizada a prisão de Wagner Jerônimo por crime de desacato, durante a ocorrência na qual obstruía com sua moto a via pública, impedindo a passagem dos transeuntes e da tropa em patrulhamento motorizado. Ao ser abordado, o referido cidadão recusou-se a retirar a moto e a apresentar a documentação. Ao ser conduzido à DPJM, o referido preso passou por um exame de higidez física na entrada e na saída, além de ser feito o APFD e, posteriormente, foi encaminhado à 21ª Delegacia de Polícia Civil, em Bonsucesso, escoltado pela Polícia do Exército, conforme prevê a legislação vigente, e entregue à 21ª DP mediante termo de recebimento;
Em relação ao falecimento de Paulo Ricardo Rodrigues Lima, o Comando da Força de Pacificação informou, no dia 24 de outubro de 2014, aos órgãos de imprensa, que não houve nenhuma ação da Força de Pacificação ou ligação para o Disque-Pacificação envolvendo Paulo Ricardo Rodrigues Lima.
No tocante ao funcionamento das escolas municipais e estaduais, a Força de Pacificação, desde o dia 5 de abril de 2014, atua constantemente no provimento da segurança nas imediações dos colégios, permitindo que os professores e alunos envolvidos participem do processo de ensino-aprendizagem, diferentemente do que ocorria no passado (antes da citada data), quando facções criminosas determinavam o fechamento das escolas, ocasionando medo e a suspensão das aulas.
A realização de eventos culturais (funk e forró) continuam ocorrendo dentro da legalidade, respeitando-se o direito de todos os moradores quanto à adequada utilização de som nas festas, a não obstrução de vias públicas e o não envolvimento com ilícitos, denunciados pelo Disque-Pacificação em várias ligações feitas pela população. Ratifica-se que esse número está à disposição da população do Complexo da Maré para a apresentação de denúncias, críticas e sugestões desde o dia 5 de abril de 2014, quando teve início a atuação das tropas federais.
A pacificação do Complexo da Maré é um processo longo, que visa à promoção de um ambiente seguro e estável para toda população, com a completa desarticulação das organizações criminosas que se instalaram na comunidade há muitos anos.
Desde abril de 2014, o intenso trabalho realizado pela Força de Pacificação contribuiu para a diminuição significativa dos índices de criminalidade no Complexo da Maré. Houve a prisão de 286 indivíduos por crime comum, de 95 pessoas por crime militar e o encaminhamento de 147 menores à Delegacia de Proteção à Criança e Adolescente por terem cometido atos infracionais, na sua grande maioria relacionados ao tráfico de drogas. Em relação aos materiais, foram realizadas 235 apreensões de drogas, 29 de armas diversas (inclusive fuzis Kalashnikov, pistolas Glock de fabricação internacional e não comercializadas no Brasil e pistolas COLT .45), de 840 munições 7,62 mm (fuzil), de 90 munições 9 mm (pistola) e de 1.203 cartuchos deflagrados, de 49 veículos, de 72 motocicletas e de 145 materiais diversos (equipamentos de telecomunicações utilizados pelos traficantes). Além disso, a liderança das organizações criminosas no Complexo da Maré foi fortemente atingida pela prisão de cinco importantes criminosos (líderes do tráfico).
A atuação da Força de Pacificação pauta-se na observância dos direitos constitucionais inerentes a todos os cidadãos brasileiros, especificamente os do Complexo da Maré. Dessa forma, a F Pac não restringe o direito de ir e vir dos moradores, nem impõe “toque de recolher às 20h” ou em outro horário. Inclusive, alguns estabelecimentos comerciais funcionam durante a madrugada.
A Força de Pacificação respalda-se nos incisos XI e XXV do Artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 para realizar a requisição das casas aos moradores nos casos de Flagrante Delito, não caracterizando invasão de domicílio por parte da tropa.
Como característica coletiva do efetivo empregado, destacam-se a excelente preparação intelectual e do material (armamentos e viaturas militares novos e modernos) e a experiência profissional na participação efetiva na pacificação dos Complexos da Penha e do Alemão e nas missões de paz da Organização das Nações Unidas (ONU), particularmente no Haiti.
Em relação ao Complexo da Maré, a Força de Pacificação atua em regime de dedicação exclusiva à segurança da população na promoção da almejada Paz Social, utilizando-se das regras de engajamento para a preservação da vida e da dignidade humanas de todos os envolvidos nas atividades pacificadoras: moradores e integrantes da Força de Pacificação. O Comando deixa claro que repudia veementemente o descumprimento das regras de engajamento e o desvio de conduta por parte de qualquer um dos integrantes da F Pac. Além disso, a sua postura é repleta de respeito à dignidade da pessoa humana, demonstrando preparo e profissionalismo da tropa empregada nas ações de patrulhamento no Complexo da Maré.
As ações planejadas da F Pac realizam-se 24 horas por dia, todos os dias da semana, por meio de patrulhamento ostensivo a pé e motorizado em todas as ruas, becos e vielas da área da Maré e do estabelecimento dos Postos de Bloqueio e Controle de Vias Urbanas (PBCVU) nos principais acessos de entrada na comunidade, onde são realizadas abordagens de pessoas e revistas de veículos (caminhões, vans, carros e motos), quando for necessário, o que tem diminuído a possibilidade de entrada e saída de armas e drogas.
A atuação da Força de Pacificação no referido processo encontra respaldo na Diretriz Ministerial nº 09, de 31 de março de 2014, do Ministro de Estado da Defesa, que expressa a determinação da Excelentíssima Senhora Presidenta da República que, atendendo à solicitação do Governador do Estado do Rio de Janeiro, autorizou o emprego das Forças Armadas em ações de Garantia da Lei e da Ordem no Complexo da Maré.
O objetivo pretendido com tal autorização é o de preservar a ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio, a fim de contribuir para o restabelecimento da paz social naquela região. A mesma encontra amparo legal no Art. 142 da Constituição da República Federativa do Brasil, na Lei Complementar nº 97/1999 e no Decreto nº 3.897/2001.
Esse processo iniciou-se no dia 5 de abril de 2014 com a entrada da Força de Pacificação, composta por cerca de três mil integrantes da Marinha do Brasil, do Exército Brasileiro, da Polícia Militar do Rio de Janeiro e da 21ª Delegacia de Polícia Civil para as ações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) nos limites do Complexo da Maré, excetuando-se a Avenida Brasil e as Linhas Vermelha e Amarela.
O Comando da Força de Pacificação solicita ao O DIA ONLINE a divulgação do Disque-Pacificação: 3105-9717. Em apoio ao trabalho da Força de Pacificação, foram efetuadas aproximadamente 1.495 ligações pela população do Complexo da Maré informando os locais de atuação de organizações criminosas, o que permitiu o planejamento das ações da Força de Pacificação e a apreensão de pessoas, armamento e materiais ligados ao crime organizado.