Por bianca.lobianco
Rio - Coragem e determinação são as palavras que regem a vida e o trabalho da delegada Márcia Noeli. Com 15 anos de uma carreira dedicada à defesa das mulheres, ela coordenou semana passada operação que colocou atrás das grades 32 agressores e marcou o Dia Internacional da Não Violência Contra a Mulher.
Numa conversa informativa, ela falou da criação de 136 Núcleos de Atendimento à Mulher, um para cada delegacia do estado, com agentes capacitados. E ainda esclarece questões delicadas, como a necessidade de mais políticas públicas no combate à violência e o medo das vítimas em denunciar as agressões. “Só a própria mulher pode romper o ciclo de violência.”
'A mulher tem que se amar e entender que o ciúme e a violência não são provas de amor'Estefan Radovicz / Agência O Dia

ODIA: Como foi feita a operação que prendeu 32 acusados de violência contra mulher semana passada?

MÁRCIA: Temos 13 Delegacias de Atendimento à Mulher no estado. Todos os mandados de prisão são cumpridos diariamente, mas em quantidades menores. Resolvemos juntar vários para serem cumpridos naquela data para marcar a campanha de combate à violência contra a mulher. Queríamos que o alto número de prisões chamasse a atenção das mulheres sobre a importância de fazer a denúncia.

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Apesar das mudanças na legislação e da criação da Lei Maria da Penha, as mulheres ainda têm medo de denunciar?
Ainda há subnotificação. As mulheres têm medo de denunciar, sentem vergonha, principalmente as de classes sociais mais altas. A lei foi fundamental para o aumento das denúncias. Antes, as penas eram alternativas, o agressor pagava uma cesta básica, pintava uma parede e voltava para casa tranquilo, achando que era só isso. Hoje há prisão em flagrante e medidas de proteção que afastam o homem da mulher. Quando o acusado chega à delegacia, se assusta e repensa. Mostra que o trabalho é sério e que algo vai acontecer após o registro.
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Mas ainda falta informação às vítimas, ou o medo fala mais alto? Por que é tão difícil para algumas mulheres deixar de conviver com o agressor?
É uma questão humana e muito pessoal. Uma soma de medos. Muitas mulheres não se separam ou não denunciam o agressor por dependência financeira, pelos filhos. Há muitos fatores. Às vezes ela se sente culpada por não ter lavado a louça ou não ter feito o serviço direito. Acha que mereceu apanhar por isso. E acha que, se ela voltar para casa, ele não vai fazer nada, mas vai. Quem agride, faria de qualquer forma. Algumas desistem na fase do processo. Mas ela precisa ter consciência de que é uma vítima. Só a própria mulher pode romper o ciclo de violência.
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É frustrante para a polícia quando a vítima desiste do processo?
Não é porque fizemos o nosso papel. Para as mulheres, é muito importante dar esse passo de registrar a queixa. Algumas levam anos, outras não conseguem. Mesmo que ela desista, entendeu o trabalho feito. Cuidamos não só da investigação, mas da vítima, encaminhando para abrigo quando precisa, para tratamento psicológico e até para entidades que possam ajudá-la a estudar, arrumar um emprego, por exemplo.
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Se a vítima tiver medo, alguém pode denunciar a violência por ela?
No Superior Tribunal de Justiça há uma emenda na qual, em caso de violência física, outra pessoa pode ir à delegacia. A polícia vai registrar, abrir inquérito e chamar a vítima. Mas, muitas vezes, ela nega a agressão e não quer fazer exame. Por conta daqueles medos. Aí fica difícil seguir com o processo, que acaba arquivado.
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A violência psicológica é crime? Como reconhecer quando acontece?
Qualquer relacionamento que não nos faça bem, não nos deixa feliz, nos faz pensar. Quando a pessoa começa a se deteriorar pelo que o outro fala, coisas do tipo “você é gorda, feia, burra”, são tipos de agressões que muitas vezes passam despercebidas. E é difícil porque, mesmo quando a relação vai mal, a mulher acredita que pode mudar aquele homem ou dar à ele outra chance.
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A ONU e órgãos de segurança divulgaram dados alarmantes de violência. Quais as maiores dificuldades da polícia no combate ao crime?
A maior dificuldade é a vítima ir à delegacia denunciar. Sem isso, não temos como saber onde e como acontece.Além das delegacias, fizemos 13 Núcleos de Atendimento À Mulher dentro de delegacias distritais. Estamos trabalhando para inaugurar um em cada delegacia do estado (faltam 136), com policiais capacitados para esse tipo de atendimento, encaminhamento para exames, tudo como nas Deams. Na Rocinha, por exemplo, 60% dos registros são de violência contra a mulher. Antes, elas não podiam falar, mas a UPP também libertou essas mulheres para denunciarem os casos.
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O que falta para que as políticas públicas sejam mais eficazes?
São eficazes, mas não suficientes. Cuidam das mulheres, mas ainda faltam políticas que passem pela educação e cultura de não violência, de conscientização. Se cada agressor tivesse atendimento psicológico, por exemplo, também ajudaria.
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Qual o perfil mais comum de agressor?
Na maior parte dos casos, a violência acontece quando não há diálogo. É uma questão cultural, o machismo, o pensamento de que ele tem poder sobre a mulher, isso independente da classe social. Na maioria das vezes, são trabalhadores. A mulher precisa se amar em primeiro lugar e entender que o ciúme e a violência não são provas de amor. A ideia de que o homem a ama tanto e por isso sente muito ciúme, está errada. Existe uma má formação da cultura do amor.
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Qual caso marcou mais sua carreira ? O que a motiva a continuar?
Era da Deam Nova Iguaçu, e só uma das vítimas, de 17 anos, resolveu continuar a denúncia contra uma quadrilha de estupradores. Nos deu informações, refez o trajeto até o local do crime. Prendemos seis, graças à coragem dela. Depois disso, 32 vítimas também denunciaram. Escrevi um livro e dediquei à ela. O que me motiva é saber que, apesar da violência, nosso trabalho pode ajudar na superação. Estamos conseguindo combater e fazer justiça e os registros só aumentam.
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