Por tiago.frederico

Rio - Um pequeno país do leste africano até então quase desconhecido para a maioria dos brasileiros virou notícia em toda a mídia na semana passada. Com o enredo Um griô conta a história: Um olhar sobre a África e o despontar da Guiné Equatorial. Caminhemos sobre a trilha de nossa Felicidade, a escola Beija-Flor de Nilopólis foi eleita a campeã do Carnaval carioca neste ano e de quebra alçou a imagem de Guiné Equatorial a todos jornais brasileiros e muitos internacionais.

GALERIA: Beija-Flor erra pouco e vai brigar pelo título do Carnaval

O desfile, considerado primoroso pela comissão julgadora, foi cercado de polêmicas. A maior delas foi a informação de que o presidente Teodoro Obiang, ditador do país desde 1979, teria doado cerca de R$ 10 milhões para a agremiação.

Escola resgata sua alma africana na Marquês de SapucaíFoto%3A Severino Silva / Agência O Dia

Os milhões para “publicidade” vieram do ouro negro abundante no país, que possui a terceira maior reserva da África Subsaariana. Mas, enquanto essa grana financia o Carnaval, não garantiu melhoria de vida para a maioria dos seus habitantes. Segundo a Organizações das Nações Unidas (ONU), menos da metade da população tem acesso a água potável e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país mede 0,556, o que o coloca na posição 144º, entre 187 países do mundo neste quesito. Além disso, quase 10% das crianças guineenses morrem antes de completar cinco anos.

Por essas e outras razões, a doação à agremiação de Nilópolis foi tão criticada por entidades de Direitos Humanos em todo mundo. Entre elas a EG Justice (Justiça para Guiné Equatorial, da sigla em inglês), fundada nos Estados Unidos pelo advogado guinéu Tutu Alicante. Ele afirmou em entrevista ao iG que, apesar do estardalhaço que o Carnaval no Brasil costuma causar, a maior parte da população do país homenageado não soube da homenagem e muito menos da doação. Isso porque, como é corriqueiro em uma ditadura, não existem jornais, rádios ou TVs independentes no país e qualquer pessoa que se oponha ao governo pode ser presa e torturada.

Tutu Alicante classifica a doação de R$ 10 milhões como uma "notícia chocante" e um "tapa doloroso" para a maioria da população, que vive com menos de US$ 2 por dia. Além disso, ele classifica a atitude como uma declaração de que o ditador Obiang "não se preocupa com o povo da Guiné Equatorial". Confira a entrevista:

iG: Como você soube que o presidente Teodoro Obiang financiaria o desfile da Beija-Flor?
Tutu Alicante: Até onde eu sei, ninguém do meu país sabia de antemão que Teodoro Obiang financiaria o desfile da Beija-Flor. Todos nós acordamos em uma manhã com a notícia chocante e terrível relatada pelos jornais brasileiros. Não há jornais na Guiné Equatorial. Não há fontes independentes de notícias em meu país. Assim, ainda hoje, a maioria das pessoas na Guiné Equatorial ainda não está consciente de que o presidente ou alguém na Guiné Equatorial tenha financiado o desfile.

O que você pensa sobre esse patrocínio de R$ 10 milhões de Obiang à Beija-Flor, sabendo que a maioria da população da Guiné Equatorial não tem acesso aos serviços públicos básicos e 1,6 milhão de pessoas vivem com US$ 2 por dia?
Para mais de 75% das pessoas no meu país, que vivem sem acesso à água potável, à saúde ou à educação decente, esta doação é um tapa doloroso que insulta e injuria toda a população. É uma declaração em voz alta do presidente Obiang de que ele não se preocupa com o povo da Guiné Equatorial e que vai continuar a usar os recursos nacionais como sua riqueza pessoal.

Você sabe como a maioria da população reagiu à notícia sobre isso?
A maioria da população ainda não sabe sobre isso. Não há jornais independentes, rádio ou TV na Guiné Equatorial. As poucas pessoas que sabem disso, graças à internet, são incapazes de expressar o seu descontentamento porque podem ser presas e torturadas.

O advogado Tutu Alicante é fundador da ONG EG Justice%2C com sede nos EUADivulgação

Quais são os principais problemas enfrentados pelos moradores da Guiné Equatorial?
A desigualdade tem crescido muito no país. Há muito poucas pessoas muito ricas e um grande número muito pobres. Isto significa que temos vários desafios, como habitação, comida, acesso à água, às escolas e a hospitais. Tudo é incrivelmente difícil no país. Além disso, o fato de não haver liberdade no país significa que um indivíduo pode ser preso e torturado a qualquer momento, por qualquer motivo que a polícia, os membros das forças armadas ou algum funcionário do governo considere suficiente. Nós vivemos em um ambiente muito repressivo. Isso não pode ser totalmente explicado até se sentir na própria carne as experiências de uma ditadura cruel que age com brutalidade e absoluta impunidade.

Quais são as principais violações de direitos humanos sofridas pelos moradores de seu país?
Todo e qualquer direito humano no meu país é violado com garantia de constante impunidade. As liberdades básicas – como imprensa, expressão, associação e reunião – são inexistentes. As detenções arbitrárias são galopantes e a tortura acontece todos os dias na Guiné Equatorial, onde não há liberdade de movimento.

Porque a sede da ONG EG Justice está em Washington, nos Estados Unidos?
A EG Justice é a única organização de direitos humanos que trabalha em Guiné Equatorial. Mas não podemos existir dentro do país porque o governo não autoriza o registro de organizações de direitos humanos e pró-democracia. Assim, ficamos do lado de fora, onde podemos atuar com ativistas do país para lutar por mudanças pacíficas.

Quando você deixou a Guiné Equatorial? Quais eram os seus motivos?
Saí em 1994 para estudar nos Estados Unidos. A ONG é a a verdadeira razão por eu não retornar para a Guiné Equatorial. Eu sou um ativista e advogado de direitos humanos e eu não teria permissão para fazer o meu trabalho no meu país. Se voltasse e continuasse com o meu trabalho, seria extremanente perigoso para mim e para minha família.

Como era a sua vida na Guiné? E como ela é hoje?
Quando eu morava na Guiné Equatorial eu era um jovem seminarista, que aspirava a se tornar um padre católico e lutar por justiça social. Hoje, sou sim um advogado de direitos humanos e ativista, ainda lutando por justiça social.

Como a ONG EG Justice trabalha dentro do território da Guiné Equatorial?
Dentro da Guiné Equatorial, apoiamos os esforços dos advogados e ativistas de defesa dos direitos humanos a promover o engajamento cívico para exigir transparência do governo. Como não podemos legalmente operar lá dentro, nós apoiamos aqueles que estão lutando nas trincheiras.


Reportagem de Ana Flávia Oliveira, do iG São Paulo.

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