Por adriano.araujo

RIo - Qual seria a reação de um escritor nascido no século 19 se desembarcasse no Centro da Cidade nos dias de hoje? Em homenagem aos 450 anos do Rio e inspirado nas obras ‘A Alma Encantadora das Ruas’ e ‘Religiões do Rio’, de João do Rio, pseudônimo de João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho (1881 - 1921), O DIA preparou uma ‘viagem ao tempo’, se colocando no lugar de um dos cronistas que descreveu de forma mais minuciosa o cenário, o povo e a cultura carioca.

Nascido no número 1.284 da antiga Rua do Hospício (atual Rua Buenos Aires, no Centro), João do Rio começou a se tornar célebre escrevendo para diversos órgãos da imprensa carioca, por volta de 1900. Além da obra literária, foi jornalista, tradutor e teatrólogo.

“Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é partilhado por todos vós”, escreveu João, em ‘A Alma Encantadora das Ruas’.

?Onde está o mar? A Praia de Santa Luzia não existe mais

Com um macacão verde espalhafatoso, um homem da Guarda Municipal parece reger uma orquestra de ruídos na Avenida Presidente Antonio Carlos. Gesticulando, ele indica quando a multidão aglomerada na calçada pode atravessar. Todos parecem alheios, deslizando os dedos em um curioso aparelho que também serve para cobrir os ouvidos. Zonzo, não reconheço onde estou. Onde está o mar?

É acompanhando os estranhos gestos do guarda que eu ando em direção à antiga Igreja de Santa Luzia, esbarrando nos passos apressados que vêm na minha direção. As faixas brancas pintadas no asfalto me deixaram ainda mais confuso com a profusão de imagens e de sons. Enquanto ninguém parece escutar, doem em meus ouvidos as buzinas de automóveis que mal saem do lugar. Quando não xingamentos, como em uma ópera de bufões sem sentido. Mas não parece um sonho ou encenação — apenas a rotina deste lugar, que a placa indica como ‘Centro’. Deus!

IGREJA SANTA LUZIA%3A 'Demoro a me localizar%2C mas a igrejinha resiste'João Laet / Agência O Dia

Demoro a me localizar, mas percebo que a igrejinha resiste ali, atrás de um imenso prédio negro cobrindo a paisagem horizontal. No entanto, é como se a alma do lugar tivesse sido sugada pela atmosfera cinza das redondezas. Para meu espanto, não há mais a brisa de mar, que refrescava os carolas depois de cada bênção e também os viciados em ópio perambulando. Um velho morador me contou que região foi aterrada por volta de 1920, e hoje grande parte dos cariocas desconhece que ali já existiu uma praia onde se podia mergulhar. O asfalto tomou lugar da areia, e o badalo dos sinos não se consegue escutar.

Após o primeiro impacto, me recomponho e observo o que ainda permanece no mesmo lugar, como os moradores de rua repousando sobre a sombra das tamarineiras na direção da Santa Casa e ambulantes anunciando suas pechinchas.

Enquanto eu tomo nota de tudo isso, ainda perplexo, um senhor alto, de terno branco e gravata vermelha vem em minha direção. "Aqui não é bom lugar para ficar parado. A esse horário, os meninos de rua aproveitam para bater carteira", avisa. Anoitece, e eu finalmente entendo porque todos andam com tanta tanta pressa. Aperto o passo antes de me despedir. A Praia de Santa Luzia não existe mais.


Na rua dos feitiços, entulho e poeira que irrita a visão

Parece que por todo lugar onde olho, há objetos enfeitiçados. Por isso, decido que é uma boa ideia visitar a casa de João Alabá, babalorixá de um terreiro de candomblé na Rua Barão de São Felix, na Região Portuária, fundado por volta de 1886. Era dali que saíam, das mãos de Alabá, toda a sorte de poções e magias para quem se arriscava. Será que ainda há alguma sombra daqueles rituais nas paredes de pedra do casarão?

Tomo um susto ao ver aquela rua tomada por crateras, e a poeira irrita minha visão. À primeira impressão, me parece um desastre natural desses estranhos novos tempos. Porém, vejo homens passando com enormes calhas de aço e pergunto o que está havendo ali. A resposta me deixa ainda mais atônito. "Estamos ampliando a rede de esgoto para o Porto Maravilha". Porto Maravilha?

RUA BARÃO DE SÃO FÉLIX%3A 'Tomo susto ao ver a rua tomada por crateras e poeira'João Laet / Agência O Dia

Depois de tirar a poeira dos olhos, observo o número 76 entre palavras incompreensíveis rabiscadas na fachada. Com as portas abertas, cartazes de um consultório dentário se espalham pelo corredor de entrada, que logo venho a saber que não está mais em funcionamento. Os novos moradores da região me contam que o investimento fechou pouco tempo depois da inauguração, assim como outros negócios que já foram abertos ali.

Nos fundos do imóvel — com aparência de laboratório —, sou recebido por um senhor negro, vestido de chapéu branco e camisa listrada em azul. "Eu só venho aqui para dormir", preocupa-se em esclarecer, antes de ser questionado. Sem dizer muita coisa, parte em retirada, olhando para baixo. Este é o único momento em que sinto, naquele lugar, a presença de João Alabá - um dos maiores feiticeiros do porto.

Além disso, não há muito para se ver, além de uma assustadora máquina recolhendo entulho das calçadas. De costas para o número 76, vejo depósito de um mercado e um imóvel, quase em frente ao antigo terreiro, que anuncia: "Igreja Evangélica Sinais e Prodígios - Uma Unção Profética".

Na Ouvidor, certas coisas que nunca morrem

Dos lugares por onde andei, a Rua do Ouvidor é um dos poucos que permanecem calçados pelas pedras portuguesas. Pisando sobre elas, por um instante me sinto transportado de volta ao meu tempo. Sobretudo quando chega a noite, e as luzes se acendem nos postes que preservam a arquitetura antiga. Lembro de versos que escrevi sobre aquele lugar: “Na artéria estreita cai a luz acinzentada das primeiras sombras — uma luz muito triste, de saudade e de mágoa”.

Resolvo parar para tomar fôlego, porém não demoro a lembrar da nova realidade. Enquanto repouso aproveitando o curioso ar gelado que sai de dentro de uma butique, um automóvel quase passa por cima de mim, mesmo na esquina tão estreita com Rua da Quitanda. Ninguém parece se importar.

RUA DO OUVIDOR%3A 'Teria o homem inventado jeito de guardar a chuva%3F'João Laet / Agência O Dia

Ao me recompor, sinto algumas gotas de água caindo no que imagino ser o anúncio da tempestade. Mas elas não vêm do céu - olho para cima e as vejo deslizando de pequenas caixas presas aos edifícios. Teria o homem inventado um jeito de guardar a chuva? Tudo em volta me confunde, enquanto uma luz vermelha e azul pisca forte diante dos meus olhos. É o letreiro de uma barbearia.

Cruzo a Travessa do Ouvidor e logo uma estátua de bronze me chama atenção. Vejo a escultura de um homem negro, com feições fortes, tocando um saxofone. "Alfredo da Rocha Vianna Filho - Pixinguinha". Observo a reprodução do meu contemporâneo e lembro das vezes em que o vi sentado nos bares daquela rua, tomando um pingado ou então um dose de cachaça - o rabo de galo.

Enquanto preparo para me despedir, escuto vindo da quadra mais próxima, na direção da Praça XV, as primeiras notas do violão de 7 cordas. É o ensaio de um grupo de samba e choro conhecido como ‘Conjunto Chapéu de Palha’, afinando os instrumentos.

Já nas primeiras músicas, durante a execução de "Vou Vivendo" (Pixinguinha), percebo que aqueles acordes são o único jeito de voltar para o meu tempo. Está tudo ali. "E... pelos bares por onde andei , quantos copos eu já quebrei.....", cantava a banda.

Sentado em um bar, não mais sinto a diferença do tempo. A atmosfera desacelera. Tudo que eu ouço é o solo de cavaquinho, acostumado a adentrar aquelas vielas, e o som abafado das pessoas conversando e cochichando ao redor, enquanto o garçom se equilibrava entre as mesas.

De súbito, uma presença ilustre puxa uma cadeira e surge ao meu lado, oferecendo um brinde. “Bem que disseram que a gente estava à frente do nosso tempo, meu camarada". Era um sujeito elegante e de corpo avantajado, o Pixinguinha. Há certas coisa que nunca morrem.

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