Por adriano.araujo

Rio - No Alto da Boa Vista, há um Vale Encantado onde não se dorme em paz. Com nome e cenário de faz de conta, a comunidade centenária sofre risco de remoção devido a uma ação da Promotoria de Justiça de Meio Ambiente que já dura dez anos. Enquanto organizam ações de sustentabilidade, os moradores vivem o drama de perder casas que guardam a história de gerações que cresceram ali.

O estado de conservação de duas placas de recepção com o nome do lugar indica que há mais de um vale encantado. A primeira, aponta na direção de um condomínio de classe média, que ocupa boa parte do território. A segunda, com tinta descascando, recebe os moradores das aproximadamente 40 casas que se estendem ocupando parte da mata. É ali que a equipe de reportagem desembarca.

Dona Deni%2C 71 anos%2C criada na comunidade Vale Encantado%2C diz ter perdido o sono com a possível remoção%3A “É um lugarzinho bom de se morar”Alexandre Brum / Agência O Dia

Entre os dois lugares, em comum, há a vista cobiçada de toda praia da Barra da Tijuca. Apontando para o horizonte, o guia comunitário Otávio Barros, de 45 anos, abre caminho na mata. “O condomínio tem muito mais moradores e degrada da mesma forma. O que mais intriga é que só a comunidade é alvo da ação”, disse. “Entre outros motivos, eles alegam crescimento desordenado. Mas a comunidade nem tem mais para onde crescer. Não sei o que está por trás disso”, questionou.

Como guia, Otávio aproveita para contar sobre as espécies de plantas da região. Em alguns trechos, a semente da paineira parece forrar o solo como um algodão. O cenário, digno de faz de contas, faz contraste com uma van carbonizada e depenada sobre a encosta de terra. “Traficantes de morros da região usam esta área para desova. Já solicitamos a recolhimento com a Comlurb, mas ninguém vem. Tenho que explicar isso para todos que vêm aqui para não ficarem com má impressão”, disse Otávio.

Mesmo com a ação já se desenrolando por dez anos, Otávio garante que os moradores mais antigos estão adoecendo com a tensão de serem despejados. É o caso de Adenir dos Santos, de 71 anos, a Dona Deni. Dividindo uma pequena casa com a nora e a neta, ela passa o dia cuidando da horta e varrendo as flores do quintal. “É um lugarzinho bom para se morar. Fomos criados aqui”, disse. “Mas há dez anos a gente perde o sono. Já tinha problemas de saúde, mas agora só saio daqui para ir ao médico. Perdemos a paz”.

Segundo Otávio, a associação de moradores foi informada que um perito do Ministério Público do meio ambiente deverá realizar uma perícia no local nos próximos meses. Servirá para atestar se a comunidade provoca danos ambientais. “A gente fica desconfiado. Aqui não é curral eleitoral, como uma comunidade do tamanho da Rocinha. Não temos voz”, reclama.

A assessoria de imprensa do Ministério Público não deu esclarecimento sobre os questionamentos feitos pela reportagem. Segundo a Secretaria Municipal de Habitação, não há projetos de moradia para aquela área.

Priscilla conversa com Otávio%2C guia comunitário e líder da cooperativa local%3A "Eles alegam crescimento desordenado. Mas a comunidade nem tem mais para onde crescer"%2C dizAlexandre Brum / Agência O Dia

ONG Francesa promove projetos e festival

?Desde 2006, a ONG francesa Abaquar Paris desenvolve mais de 15 projetos com a comunidade, como estudos sobre os recursos hídricos, instalação de um biodigestor, junto com a PUC, e desenvolvimento de horta orgânica.

Em 2013, a organização promoveu o Festival Encantado, com participação de artistas internacionais e o cantor Criolo. Com intenção de chamar atenção para a causa, o evento apresentou mostra de moda e gastronomia inspirados na região. Segundo Jérôme Auriac, diretor da ONG, um novo formato para o festival está sendo preparado para ser divulgado em breve.

“São projetos cuja proposta é fomentar as capacidades das crianças e dos moradores de desenvolver projetos sustentáveis e geradores de renda”, afirmou Jérôme. “O papel da prefeitura é de organizar e fazer com que as comunidades sejam bairros reais da cidade e não o contrário, removendo-as”, protestou.

História?

A região do Vale Encantado começou a ser ocupada na época do Ciclo do Café, no século 19, quando trabalhadores das plantações traziam suas famílias para morar ali.

Por volta de 1950, começou a exploração de granito — abundante na área. Por razões ecológicas, a pedreira foi fechada em 1989, quando muitos trabalhadores tiveram que deixar a localidade.

“Muitas senhoras que eram submissas aos maridos funcionários da pedreira ficaram sem renda. A ideia é integrá-las ao trabalho da cooperativa, como no preparo de alimentos”, disse o líder comunitário Otávio Barros.

Em busca de alternativas

?Além do Vale Encantado, outras 11 pequenas comunidades do Alto são alvo da ação. Entre elas estão: João Lagoa, Soberbo, Caminho Santo André, Açude, Redentor e Furnas 866. Elas são representadas pelo Conselho de Cidadania do Alto da Boa Vista, liderada por Otávio Barros. “O Alto se mobilizou para o melhoramento do bairro. Acredito que o turismo ambiental seja uma boa solução para que essas comunidades se tornem sustentáveis”, afirmou Otávio.

No Vale Encantado, está sendo construída, com o apoio da ONG francesa Abaquar Paris, e projeto de arquitetos da PUC, a sede da associação de moradores. Para os que querem visitar, Otávio organiza uma trilha pela comunidade. Depois do passeio, há um almoço preparado com frutos típicos da região.O preço do programa é R$ 60.

?Reportagem de Lucas Gayoso

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